LUIZ VILELA
Coisas De Hotel
Era meu
vizinho, morava no quarto ao lado. Hoje, de manhã, quando a servente veio fazer
a limpeza, encontrou-o morto. Eu não estava na hora, já tinha saído para o
trabalho; e de tarde, quando cheguei, já tinham levado o corpo. Morreu durante
a noite. Parece que ainda não sabem se foi morte natural ou suicídio.
Ele chamava-se João. Até ontem eu pensava que o seu nome fosse Alberto. Deve
ser porque alguma vez ouvi, por engano, alguém se referir a ele com esse nome.
Não me lembro de quem ou quando foi, mas só pode ser, porque nunca conversamos
e ele nunca teve a oportunidade de me dizer o seu nome, ou eu de perguntar.
Apesar de vizinhos, nunca fomos um ao quarto do outro. Mas isso não tem nada de
mais, é uma situação comum num hotel; há pessoas que passam anos morando em
quartos vizinhos e às vezes não trocam nem mesmo uma palavra.
Havia talvez mais de ano já que ele morava aqui. Lembro-me dele no hotel há um
bom tempo, embora não me recorde exatamente da primeira vez em que o vi. A não
ser quando é uma pessoa com alguma característica marcante, a gente não presta
muita atenção nos hóspedes novos; uma hora a gente cruza no corredor e observa
que a pessoa é nova no hotel, mas pode ser que antes disso, ontem ou anteontem,
já tenhamos passado por ela mais de uma vez e nem reparado. É que há sempre
gente chegando e saindo, e quem já mora
no hotel há mais tempo se acostuma com esse movimento.
Ele era uma pessoa comum, não se distinguia por nada. A velha do trinta e
quatro, por exemplo: esta, desde o primeiro dia em que a vi me chamou a
atenção, com aquele vestido quase batendo nos pés, o coque, e a cara
fantasmagórica. Até hoje, quando passo por ela, ainda a observo — de
maneira discreta, evidentemente. Mas ele, não. Lembrando-me agora das vezes em
que o vi, que cruzei com ele no corredor, sei dizer que ele era de estatura
média, idade mais ou menos de uns trinta anos, o andar lento, sempre de terno
escuro e gravata. Pouco mais do que isso eu poderia dizer. E não falo assim da
cor dos olhos, ou, por exemplo, se ele tinha alguma cicatriz no rosto; falo de
sua aparência. Era uma pessoa alegre? Triste? Preocupada? Não saberia dizer;
pelo menos, com segurança. Cumprimentávamo-nos, e posso dizer que ele era uma
pessoa educada. Mas não me lembro de alguma vez que ele tenha me sorrido, além
desse vago sorriso que acompanha um bom-dia ou um boa-noite. Mas nem por isso,
também, tinha cara de poucos-amigos. A impressão que me fica dele, agora que
ele está morto e que me lembro das vezes em que o vi, é a de uma pessoa
simpática, educada, calada.
Chego a pensar que poderíamos ter sido bons amigos. É um pensamento que me vem
agora dessas impressões; na verdade, não há nada que me garanta isso, pois eu
não sabia, nem sei ainda, praticamente nada a respeito dele. Nem o seu nome eu
sabia... Julgo pelas impressões. É uma pessoa de quem eu teria prazer em me
aproximar e puxar conversa, tornar-me amigo. Quanto a ele, não sei, não posso
ter idéia do que ele pensava em relação a mim. Mas imagino que ele me encarasse
também com alguma simpatia, já que, pelo menos nas aparências, tínhamos alguma
coisa em comum: esse mesmo jeito calado.
Penso tudo isso agora que ele morreu e que essas coisas não poderão mais
acontecer. Mas, talvez, eu já pensasse antes; apenas não cheguei a expressá-lo
claramente para mim, como faço agora. É que nunca dei maior atenção à coisa.
Tenho a cabeça sempre muito cheia de preocupações. Meu serviço é muito
absorvente; mesmo no hotel, quando chego à noite, é difícil pensar em algo que
não esteja relacionado a ele. E quando isso me cansa ou aborrece, o que
geralmente faço é ir a um cinema, ou então beber com algum amigo no bar. Se
estou com preguiça de sair ou sem vontade, ligo o rádio e fico escutando música
até vir o sono. Nunca, nessas ocasiões, pensei no vizinho.
Para dizer a verdade, era como se ele não existisse, ou que tanto fazia ele
existir como não existir. Eu sabia que havia um outro quarto ao lado do meu e
que nesse quarto morava outra pessoa que era aquele homem que eu via no
corredor e cumprimentava; mas nunca me pus a pensar detidamente nisso. Eu
tinha, ali no hotel, o meu quarto para dormir; e fora, na rua, o serviço, os
amigos e as diversões. Era isso o meu mundo. O homem do quarto vizinho não
entrava nele; eu não sentia necessidade dele, e por isso não pensava nele. Pode
ser que o mesmo acontecesse com ele: talvez também não sentisse necessidade de
mim e não pensasse em mim.
Agora ele morreu, e penso nele; mas é apenas porque sua morte me impressiona.
Pois, fico lembrando, ontem mesmo passei por ele e o cumprimentei — e agora ele
está morto. Mas não sinto nenhuma espécie de tristeza. Não éramos amigos. Não
chegávamos a ser nem mesmo conhecidos. Simplesmente vizinhos. Como já houve
outros antes dele, de que ainda me lembro ou que já esqueci, e como haverá
outros depois dele. Daqui a alguns dias, talvez até amanhã mesmo, outra pessoa
virá morar no lugar dele. Há sempre gente procurando quartos, e o hotel não
quer perder dinheiro.
LUIZ VILELA
nasceu em Ituiutaba, Minas Gerais, em 31 de dezembro de 1942. Formou-se em
Filosofia, em Belo Horizonte. Foi jornalista em São Paulo. Morou algum tempo
nos Estados Unidos e outro tempo na Espanha. Atualmente mora em sua cidade
natal. Começou a escrever aos 13 anos. Aos 24 estreou na literatura brasileira,
com o livro, de contos, Tremor de terra, e com ele ganhou o Prêmio
Nacional de Ficção. Vilela ganhou também o Prêmio Jabuti, de melhor livro de
contos do ano, com O fim de tudo. É autor de treze livros, todos de
ficção, entre os quais a novela O choro no travesseiro, e o romance O
inferno é aqui mesmo. Já foi adaptado para o teatro, o cinema e a
televisão, e traduzido para várias línguas. Seu livro mais recente é a novela
Bóris e Dóris, a sair em breve pela Editora Record, que reeditará toda a
sua obra. “Coisas de hotel” foi extraído de O fim de tudo.
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