RONALDO CORREIA DE BRITO
SABOEIRO-CE = 1951
Deus Agiota
A chama oscilante da lamparina a querosene, ora clareando ora escurecendo o rosto suado de febre de Maria Madalena, trouxe à lembrança de João Emiliano o dia em que a viu pela primeira vez. Ela não tinha as rugas que agora marcavam sua testa contraída, nem a sombra da morte cobrindo a sua beleza. Os olhos amendoados só falavam de vida e promessas amorosas, no curto relance em quem olharam Emiliano, quando ele meneou a cabeça, entre um movimento e outro do arco da rabeca, magistralmente manejada por suas mãos de músico. Ofício que dividia com a agricultura, pois os músicos, no seu tempo, também plantavam e colhiam arroz, feijão e milho.
Poucos se diziam artistas, antes se referindo aos ofícios,
cuja arte dominavam. Aquele era sapateiro, ou artesão do couro; o outro, mestre
carpinteiro, plainava a madeira rude, dando-lhe forma de móveis. Um conhecia o
ponto exato em que a garapa de cana virava mel e podia ser mexida até
transformar-se em pedaços de açúcar preto: era o mestre de rapadura. E tinha o
alfaiate, artista do pano; o ourives, artesão do ouro; o que plantava e era
músico, nas horas em que os dedos cansados da enxada pediam outro instrumento
em que tocar.
João Emiliano via Maria Madalena morrer sem nunca lhe ter
perguntado de quem gostava mais: do agricultor que enchia a casa de legumes ou
do violinista que vira primeiro, num relance, quase não dando para se
reconhecerem no segundo encontro.
O nome de Madalena ele ouvira gritado, entre os murmúrios
da festa, num descanso do arco e da zabumba.
- Maria Madalena!
E fora como se o Oriente conhecido nos romances e folhetos
se descortinasse, um vento quente de deserto soprasse no Ceará, tamanha a força
daquele nome, ligado ao de Jesus Senhor. Uma revelação que nunca se acabava,
todas as vezes em que chamava a mulher, desavisado:
- Maria Madalena!
E ela se mostrava na doçura de ser uma e não as outras de
quem o nome falava.
- Maria Madalena! - sussurrava João Emiliano, temendo que o
leve sopro da sua voz empurrasse a mulher para a morte, quea espreitava há
dias. - Lembra quando eu fui pedir você em casamento, para Anselmo Divino? Ele
estava passando do tempo de solteiro e soube que seu pai tinha cinco filhas
boas de casar. Ele gaguejava e não dizia duas palavras sem tremer. Por isso
pediu que eu fosse em nome dele. Se conseguisse a noiva, ele me dava o melhor
carneiro de sua criação.
As lembranças comoviam João Emiliano. Com os dedos calosos
corria as rugas do rosto da mulher, um traçado lembrando os caminhos do mundo,
a terra toda se desenhando ali, num mapa onde João Emiliano viajara seus
sonhos.
- Madalena, você vai mesmo morrer?
Sem ouvi-lo recontar da manhã em que assomara à casa do seu
pai, amassando um chapéu entre as mãos, até torná-lo inútil. No caminho,
montando um cavalo rudado, monologava o pedido de casamento, que faria em nome
do amigo. Tinha planos para o carneiro que orgulharia seu curral.
Nunca ganhara tão fácil, achou. Até olhar a casa no alto e
sentir um suor frio molhando a camisa e o paletó. Não sabia pedir moça
emcasamento. Menos ainda para os outros. Sentiu vontade de desistir, mas um
relance de vista armou-lhe nova cilada. Os mesmos olhos da festa andavam por
perto, nas margens de um açude, contemplando um coradouro de roupas
lavadas.
João Emiliano acreditava na ciência da premonição. Por mais
haveres e quereres dera com seus passos ali, mandado buscar um amor para outro.
Repensou o pedido e ele se apagara da memória. Não restava uma única das
palavras que repetira cem vezes.
- Senhor! - implorou, arrancando-se das lembranças para a
realidade de um presente doloroso. - Não leva minha mulher pra tua morada.
Deixa ela comigo e com os nossos filhos, mais um tempo. Nós não somos nada sem
ela.
A luz amarela tremeluzia, ressaltando as feições dolorosas
do Senhor do Universo, posto em estampa, que de tão bem pintado parecia ouvir.
Não dava para adivinhar se Ele se compadeceria ou não do suplicante, atendendo
aos seus rogos. Nem se enxergava merecimento bastante, no pedinte, para
atendê-lo a troco de nada.
- Se tiver de levar alguém, leva eu ou um dos meninos. Ela
não. Ela faz mais falta que qualquer um de nós.
Suplicou João Emiliano, procurando, na raiz do peito, uma
fé que duvidava ter. Lembrava-se do pedido antigo, quando advogou em causa
propria, esquecendo de Anselmo Divino, a serviço de quem vinha contratado.
Bastou ver os olhos de Madalena para mudar de intenção, experimentando o terror
dos noivos quando encaram os sogros. Uma timidez paralisante possuiu-o quando o
pai de Madalena mandou que sentasse em cadeira de couro cru, de pouco
conforto.
- Quer dizer que o senhor veio pedir uma filha minha em
casamento?...
- Vim.
- Pra si mesmo?
- Pra quem mais haveria de ser?
- E o senhor pretende dar sustento a ela, tocando uma
rabeca?
- Sou homem da enxada e do roçado. A rabeca é só
complemento.
- Pois eu lhe dou ela. Mas dou sem nada.
- Não quero o que é do senhor.
Alheia ao destino que traçavam para si, Madalena cruzou o
terreiro na companhia das quatro irmãs, qualquer uma delas podendo ser a
escolha de Anselmo Divino. A causa do amigo era causa esquecida. Em proveito
próprio Emiliano arava.
- E como é o nome da minha filha que você quer para
esposa?
Tomado de surpresa, João Emiliano sentiu faltar-lhe a
resposta. Entreouvira um nome numa festa, que poderia ou não ser dos olhos que
possuiam seu amor. Uma tontura de derrotado apagou todos os nomes de mulheres
de sua memória e ele seria capaz de morrer, se a única salvação fosse lembrar o
nome da mãe. Abestalhado, olhava o sogro que media o candidato a genro,
esperando a resposta.
Estava para sair correndo quando meneou a cabeça, num
sestro de quem toca a rabeca e viu, posto nele, um par de olhos azuis,
iluminando o rosto mais belo que já contemplara. Comovido, apontou na direção
da eleita, falando calmo e firme:
- Minha futura mulher é aquela.
E seria por muitos anos mais. O rosto complacente do Senhor
atendeu à súplica de João Emiliano e deixou Madalena viver. Mas cobrou com juro
de agiota o que lhe fora prometido. Levou dois dos onze filhos do casamento, no
mesmo dia e hora.
in Diário de Pernambuco, 13/09/98
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