LIMA BARRETO
RIO DE
JANEIRO-RJ = 1881-1922
Queixa De
Defunto
Antônio da Conceição, natural desta
cidade, residente que foi em vida na Boca do Mato, no Méier, onde acaba de
morrer, por meios que não posso tornar público, mandou-me a carta abaixo que é
endereçada ao prefeito. Ei-la:
"Ilustríssimo e Excelentíssimo
Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida
nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma.
Nunca exerci ou pretendi escrever isso que se chama os direitos sagrados de
cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único
dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu
lustras e eu não.
Não fui republicano, não fui
florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem
em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na santa paz do Senhor
quase sem pecados e sem agonia.
Toda a minha vida de privações e
necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte um
sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti
pelo pensamento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.
Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos
"bíblias", nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou
dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.
Vivia uma vida santa e obedecendo às
prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os
Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronuncaidas com toda
eloquência em galego ou vasconço.
Segui-as, porém, com todo o rigor e
humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri
afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e
os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava
dinheiro algum. É bom, meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas
muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e
amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não
pagamos mais a casa.
Foi o que aconteceu comigo e estava
certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição
que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.
Embora a pena seja leve, eu me amolei,
por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura
Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando
convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério
de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram
que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Esta rua foi calçada há perto de
cinquenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há
caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um
pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola
sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário,
saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.
Comigo não aconteceu isso, mas o
balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio
de arranhaduras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:
- Que diabo é isto? Você está todo
machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado - como é então que você
arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe, mas não me quis atender
e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.
Está aí como, meu caro Senhor Doutor
Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais
santa possível. Sou, etc., etc."
Posso garantir a fidelidade da cópia a
aguardar com paciência as providências da municipalidade.
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