FERNANDO SABINO
BELO HORIZONTE-MG =1923-2004
David Neves passava de carro às onze horas de certa noite de Sábado por uma rua de Botafogo, quando um guarda o fez parar:
– Seus documentos, por favor.
Os documentos estavam em ordem, mas o carro não estava:
tinha um dos faróis queimado.
– Vou Ter de multar– advertiu o guarda.
– Está bem– respondeu David, conformado.
– Está bem? O senhor acha que está bem?
O guarda resolveu fazer uma vistoria
mais caprichada, e deu logo com várias outras irregularidades:
– Eu sabia! Limpador de pára-brisa quebrado, folga na direção, freio desregulado. Deve haver mais coisa, mas para mim já chega. Ou o senhor acha pouco?
– Eu sabia! Limpador de pára-brisa quebrado, folga na direção, freio desregulado. Deve haver mais coisa, mas para mim já chega. Ou o senhor acha pouco?
– Não, para mim também já chega.
– Vou Ter de recolher o carro, não pode trafegar nessas
condições.
– Está bem– concordou David.
– Não sei se o senhor me entendeu: eu disse que vou Ter de
recolher o carro.
– Entendi sim: o senhor disse que vai Ter de recolher o
carro. E eu disse que está bem.
– O senhor fica aí só dizendo está bem.
– Que é que o senhor queria que eu dissesse? Respeito sua
autoridade.
– Pois então vamos.
– Está bem.
Ficaram parados, olhando um para o outro. O guarda,
perplexo: será que ele não está entendendo? Qual é a sua, amizade? E David,
impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não vê a cor do burro de um
tostão. E ali ficariam o resto da noite a se olhar, em silêncio, a autoridade e
o cidadão flagrado em delito, se o guarda enfim não se decidisse:
– O senhor quer que eu mande vir o reboque ou prefere levar
o carro para o depósito o senhor mesmo?
– O senhor é que manda.
– O senhor é que manda.
– Se quiser, pode levar o carro o senhor mesmo.
Sem se abalar, David pôs o motor em movimento:
– Onde é o depósito?
O guarda contornou rapidamente o carro pela frente, indo
sentar-se na boléia:
– Onde é o depósito…O senhor pensou que ia sozinho? Tinha
graça!
Lá foram os dois por Botafogo afora, a caminho do depósito.
– O senhor não pode imaginar o aborrecimento que ainda vai
Ter por causa disso — o guarda dizia.
– Pois é — David concordava: — Eu imagino.
– Pois é — David concordava: — Eu imagino.
O guarda o olhava, cada vez mais intrigado:
– Já pensou na aporrinhação que vai Ter? A pé, logo numa
noite de Sábado. Vai ver que tinha aí o seu programinha para esta noite…E
amanhã é Domingo, só vai poder pensar em liberar o carro a partir de
Segunda-feira. Isto é, depois de pagar
as multas todas…
– É isso aí– e David o olhou, penalizado: — Estou pensando
também no senhor, se aborrecendo por minha causa, perdendo tempo comigo numa
noite de Sábado, vai ver que até estava de folga hoje…
– Pois então? — reanimado, o guarda farejou um entendimento: — Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.
– Pois então? — reanimado, o guarda farejou um entendimento: — Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.
– É isso aí, tudo se arranja. Onde fica mesmo o depósito?
O guarda não disse mais nada, a olhá-lo, fascinado. De
repente ordenou, já à altura do Mourisco:
– Pare o carro! Eu salto aqui.
– Pare o carro! Eu salto aqui.
David parou o carro e o guarda saltou, batendo a porta, que
por pouco não se despregou das dobradiças. Antes de se afastar, porém,
debruçou-se na janela e gritou: – O senhor é um psicopata!
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