HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA
= 1886-1934
O Gramático
Alto,
magro, com os bigodes grisalhos a desabar, como ervas selvagens pela face de um
abismo, sobre os cantos da funda boca munida de maus dentes, o professor
Arduíno Gonçalves era um desses homens absorvidos completamente pela gramática.
Almoçando gramática, jantando gramática, ceando gramática, o mundo não passava,
aos seus olhos, de um enorme compêndio gramatical, absurdo que êle justificava
repetindo a famosa frase do Evangelho de João:
—
No princípio era o VERBO!
Encapado
pela gramática, e às voltas, de manhã à noite, com os pronomes, com os
adjetivos, com as raízes, com o complicado arsenal que transforma em um
mistério a simplicíssima arte de escrever, o ilustre educador não consagrava
uma hora sequer às coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa pedia-lhe, às
vezes, sacudindo-lhe a caspa do paletó esverdeado pelo tempo:
—
Arduíno, põe essa gramatiquice de lado. Presta atenção aos teus filhos, à tua
casa, à tua mulher! Isso não te põe para diante!
Curvado
sobre a grande mesa carregada de livros, o cabelo sem trato a cair, como
falripas de aniagem, sobre as orelhas e a cobrir o colarinho da camisa, o
notável professor retirava dos ombros a mão cariciosa da mulher, e pedia-lhe,
indicando a estante:
—
Dá-me dali o Adolfo Coelho.Ou:
— Apanha, aí, nessa prateleira, o Gonçalves Viana.
Desprezada por esse modo, Dona Ninita não suportou mais o seu destino: deixou o marido com as suas gramáticas, com os seus dicionários, com os seus volumes ponteados de traça, e começou a gozar a vida passeando, dançando e, sobretudo, palestrando com o seu primo Gaudêncio de Miranda, rapaz que não conhecia O padre Antônio Vieira, o João de Barros, o frei Luís de Sousa, o Camões, o padre Manuel Bernardes, mas que sabia, como ninguém, fazer sorrir as mulheres.
— Êle não prefere, a mim, aquela porção de alfarrábios que o rodeiam? Então, que se fique com eles!
E passou a adorar o Gaudêncio, que a encantava com a sua palestra, com o seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas quais não figuravam, jamais, nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes de Azurara, nem Rui de Pina, nem Gil Vicente, nem, mesmo, apesar do seu mundanismo, D. Francisco Manuel de Melo.
Assim
viviam, o professor, com seus puristas e Dona Ninita com o seu primo, quando,
de regresso, um dia, ao lar, o desventurado gramático surpreendeu a mulher nos
braços musculosos, mas sem estilo, de Gaudência de Mianda. Ao abrir-se a porta,
os dois culpados empalideceram, horrorizados. E foi com o pavor no coração que
o rapaz se atirou aos pés do espôso traído, pedindo súplice, de joelho:
—
Me perdôe, professor!
Grave,
austero, sereno, duas rugas profundas sulcando a testa ampla, o ilustre
educador encarou o patife, trovejando, indignado:
—
Corrija o pronome, miserável! Corrija o pronome!
E,
entrando no gabinete, começou, cantarolando, a manusear os seus clássicos…
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