FLÁVIO GUERRA
RECIFE-PE =
1910-1989
Namorados De
Antigamente
Houve tempo no velho Recife em que namorar
era quase um crime. A escolha dos maridos competia aos pais. E se a moça
olhasse para outro que não o escolhido o escândalo rebentava e os ânimos no
meio das famílias tomavam aspectos imprevisíveis. Havia mesmo lares em que a
palavra namorar era considerada tabu, gozava de má fama, constituía uma
indecência.
Mas como o amor é eterno, as proibições e as
severidades sofriam as naturais reações do homem e da mulher. No tempo de
antanho as coisas se processavam mais ou menos assim: Um olhar mais demorado,
depois um ar de riso, outro olhar agora lânguido, um furtivo aperto de mão no
bulício de algum aglomerado, um bilhetinho clandestino e pronto, estava iniciado
um namoro.
Até uns cinqüenta anos passados o grande
confidente do moço enamorado no Recife foi o lampião da esquina. Dali
deitavam-se os olhares à distância, às vezes até de uma calçada para o terceiro
andar dos sobradões antigos. O moço ficava horas inteiras de cabeça erguida,
"gargarejando" como se dizia. A rua não existia para ele. Somente a
varanda ao alto e a visão de Naninha lá em cima, de tranças, blusa de bolinhas
azuis, saia preta chegando aos pés, lencinho entre os dedos pronto para ser atirado
em direção a ele.
E o Juquinha ali firme. Acabara de fazer o
curso de Direito e estava praticando advocacia com o tio-padrinho. Tinha um bom
futuro pela frente, mas naquele instante era simplesmente um namorado recifense
dos primeiros anos do século XX: um molho de violetas na lapela, jaquetão de
gola de seda, colete de trespasse, plastrão vermelho, calça tabica, colarinho
duro, chapeu de coco cinzento.
Para eles nada mais havia: nem os carros que
passavam; nem as pessoas que se cruzavam; nem o menino que oferecia balas de
cambará e de hortelã; nem a preta vendedora de bolos, postada na esquina bem
perto; nem os balaieros que passavam apregoando com voz melódica; sequer o
próprio acendedor de lampiões, que chegava para a faina diária.
Meses de namoro assim à distância. Uma ou
outra cartinha por intermédio da comadre Iluminata que morava perto. Raras,
muito raras mesmo, às vezes que conseguiam conversar no postigo da casa da
comadre protetora do namoro. Embora correndo para ir tomar um transporte que nunca
chegava, num disfarce quando notava a aproximação de algum estranho, esses
momentos eram inesquecíveis: ele de fora, ela de dentro. Mãos que se agarravam,
rostos que se juntavam pela primeira vez, uma madeixa da moça roçando levemente
pela fronte do rapaz. As conversas, as promessas, os olhares profundos. Os
beijos eram raros, ou quase não havia. Isso só depois do noivado, e assim mesmo
apenas nas faces. Contudo ainda havia quem criticasse:
- Um "chamego", Dona Nanu. Uma
pouca vergonha...
Às vezes o velho Cazuza aparecia sem ninguém
esperar. Chegava brabo. Recebera uma denúncia e saíra de casa violento.
Pegara-os em flagrante. O rapaz pálido, gaguejando. A moça chorando. O velho
aos berros:
- Naninha passe pra casa... E você,
cafajeste, que se afaste. Ou pensa que tenho filha para dar a qualquer
bilontra? Quanto à senhora, comadre Iluminata, deixe de ser alcoviteira...
Mas nada impedia o namorado do Recife
antigo. Havia sempre uma derivante, um escape. Ora um encontro proporcionado em
uma dança familiar, uma sessão nos cinemas Royal e Pathé, uma ida à retreta da
praça da República. Algumas vezes recorria-se também aos apelos das serenatas
altas horas da noite, com modinhas amorosas e violões plangendo pelas ruas onde
morava a moça.
Mas, algum tempo depois, "o
cafajeste" tornara-se mesmo o noivo e, por fim, marido de Naninha. Seu
Cazuza andara tirando informações do rapaz e afinal concordara. Agora era
"o velho" quem dizia entre amigos:
- O Juca é um rapaz brilhante. Sou feliz em
tê-lo como genro.
Mas para isso os moços sofreram muito.
Hoje os namoros são bem diferentes. Não têm
mais o sabor da inocência, da proibição, da luta pela conquista da bem-amada,
como antigamente.
Hoje a coisa é fácil, aliás fácil demais...
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