FERNANDO
SABINO
BELO
HORIZONTE = 1923 / 2004
Eloqüência Singular
Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:
— Senhor
Presidente: eu não sou daqueles que...
O verbo ia para o
singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente
ser o singular:
— Não sou
daqueles que...
Não sou daqueles
que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas
armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e
era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar
tempo:
— ...embora
perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do
povo nesta Casa, não sou...
Daqueles que
recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses
casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para
o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.
— ...daqueles
que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...
Safara-se porque
nem se lembrava do verbo que pretendia usar:
— Não sou
daqueles que...
Daqueles que o
quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira
pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de
saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado
corretamente, no singular. Ou no plural:
— Não sou
daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para
que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...
Intercalava orações
e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por
esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas.
Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:
— Neste momento
tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.
Ambas legítimas?
Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era
coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um
sabia que levava sempre o verbo ao plural:
— ...não sou
daqueles que, conforme afirmava...
Ou ao singular?
Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM
daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:
— Senhor
Presidente. Meus nobres colegas.
A concordância
que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura,
disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...
— Como?
Acolheu a
interrupção com um suspiro de alívio:
— Não ouvi bem o
aparte do nobre deputado.
Silêncio. Ninguém
dera aparte nenhum.
— Vossa
Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e
apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.
— Eu? Mas eu não
disse nada...
— Terei o maior
prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.
O silêncio continuava.
Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o
desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do
herói e a agonia da tarde.
— Que é que você
acha? — cochichou um.
— Acho que vai
para o singular.
— Pois eu não:
para o plural, é lógico.
O orador seguia
na sua luta:
— Como afirmava
no começo de meu discurso, senhor Presidente...
Tirou o lenço do
bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir
ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é,
me tira desta...
— Quero comunicar
ao nobre orador que o seu tempo
se
acha esgotado.
— Apenas algumas
palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar,
quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais
de vinte anos de vida pública...
E entrava por
novos desvios:
— Muito embora...
sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor
Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...
O Presidente
voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:
— Senhor
Presidente, meus nobres colegas!
Resolveu
arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:
— Em suma: não sou
daqueles. Tenho dito.
Houve um suspiro
de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O
orador foi vivamente cumprimentado.
Texto extraído do livro "A
companheira de viagem", Ed. do
Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 139.
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