MÚCIO LEÃO
RECIFE-PE = 1898-1969
A Rede
A
nossa venerável rede já aparece no primeiro documento relativo ao Brasil. Lá
está na carta de Pero Vaz de Caminha. Vão os conquistadores brancos visitar a
aldeia dos índios, e eis como Caminha a descreve: "Segundo eles diziam,
foram bem uma légua e meia a uma povoação de casas, em que haveria nove ou dez
casas, as quais diziam que eram tão compridas cada uma como esta nau capitânea;
e eram de madeira, e de ilhargas de tábuas, e cobertas com palha de razoada altura,
e todas em uma só casa, sem nenhum repartimento; tinham de dentro de muitos
esteios e de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos em cada esteio, altas,
em que dormiam; e debaixo, para se agüentarem, faziam seus fogos."
Objeto
de uso imprescindível para o índio, foi logo a rede um objeto também
imprescindível para o branco, que tão bem procura assimilar tantos hábitos
selvagens. Em São Paulo por exemplo, a difusão da rede foi imensa. Todo mundo
só dormia em rede. Sérgio Buarque de Holanda alude a uma determinada cama que
existiu em São Paulo no século XVIII: a de Gonçalo Pires. Mas acrescenta:
"Em verdade, não era essa cama a única existente na época em São Paulo.
Existia ainda a de Gaspar Cunha e de sua mulher Isabel Sobrinha."
Como
em São Paulo, a rede é, no Nordeste, um elemento insubstituível de vida.
Segundo Gardner, a rede é, à noite, a cama preferida por ser muito fresca — o
que ele, que durante três anos não dormiu em outra coisa, pode atestar; e é
durante o dia, o substituto da cadeira ou do sofá...
Dormida
de índios, a rede passa, com efeito, a ser dormida de brancos. E como os
brancos a ela se adaptam, como a amam, como a adoram! Há, nesse sentido, um
depoimento curioso — o do padre Rui Pereira, o amabilíssimo jesuíta, aquele
doce homem para o qual o Brasil era o paraíso na terra. Ele expressava a sua
infinita felicidade de viver no Brasil, e meditava: "Dir-me-ão; que vida
pode ter um homem dormindo em uma rede, pendurado no ar como rédea de uvas?
Digo que é isto cá, tão grande coisa que, tendo eu cama de colchões, e
aconselhando-me o médico que dormisse na rede, a achei tal que nunca mais pude
ver cama, nem descansar noite que nela não dormisse, em comparação do descanso
que nas redes acho."
Ainda
hoje será assim. Se o Nordeste, em geral, adotou a cama como um móvel de uso
constante — nem por isso baniu a rede. E há regiões nordestinas, sobretudo no
interior, em que a rede continua a ser durante a noite a cama em que se dorme e
durante o dia o sofá ou a cadeira em que se repousa.
Além
do lugar de dormir, a rede era também veículo de transporte. Ainda hoje no
interior será usada — ora para transportes de enfermos ou até de mortas, como a
vimos pessoalmente tanta vez, em localidades pernambucanas; ora para conduzir
pessoas importantes, que não desejam cansar os pés.
Koster,
que tanto se divertiu com as coisas brasileiras, conta um episódio curioso,
ligado a rede como meio de transporte. Achava-se ele enfermo no engenho, e
tendo de ir a Recife, teve de recorrer a uma rede, que era conduzida por negros.
Ao atravessarem Olinda, uma preta perguntou se ali ia algum morto. Respondeu um
dos carregadores: "Não é um morto que levamos aqui: é o diabo, que vai
dentro da rede." Depois voltou-se para Koster e perguntou: "Não é
mesmo, patrão?". Ao que Koster respondeu: "É sim." A boa mulher
continuou seu caminho, benzendo-se e excomungando: "Ave Maria! Deus vos
defenda!"
Motivo
de constante saudade para os nortistas ou nordestinos que emigram para o Sul,
para os sulistas que sairam do país, a rede é uma fonte de inspiração do
brasileiro. Lá está celebrada na emoliente e quente poesia de Gonçalves Crespo.
Lá está nas deliciosas trovas de Adelmar Tavares.
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