CECÍLIA MEIRELES
RIO DE JANEIRO-RJ
= 1901-1964
O Fim Do Mundo
A
primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum
sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim.
Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio
desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo
acontecimento que elas tanto temiam.
Nada
disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós,
crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores
do tapete.
Mas, uma
noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me
à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então
não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me,
de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos
telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua
festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há
lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me
causava medo nenhum.
Ora, o
cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se
acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a
tristeza das crianças?
Passou-se
muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo.
Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois
em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem
se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.
Dizem que
o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque
eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que
conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos
naquela noite já muito antiga.
O mundo
vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu
a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão
sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em
nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os
cofres públicos - além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras
tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa
crônica.
Se o fim
do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este
dom de viver da maneira mais digna.
Em muitos
pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os
mundos - que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a
sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia,
lançam flores ao fogo, num rito de adoração.
Enquanto
isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo,
neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos
arrogamos posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda
grandiosidade total.
Ainda há
uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim
do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...
Texto extraído do livro "Quatro
Vozes", Distribuidora
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