domingo, 24 de março de 2013

CRÔNICA = Carlos Drummond de Andrade


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-ME  =  1902-1987

Esparadrapo


Aquele restaurante de bairro é do tipo simpatia/classe média. Fica em rua sossegada, é pequeno, limpo, cores repousantes, comida razoável, preços idem, não tem música de triturar os ouvidos. O dono senta-se à mesa da gente, para bater um papo leve, sem intimidades.
Meu relógio parou. Pergunto-lhe quantas horas são.
- Estou sem relógio.
- Então vou perguntar ao garçom.
Ele também está sem relógio.
- E o colega dele, que serve aquela mesa?
- Ninguém está com relógio nesta casa.
- Curioso. É moda nova?
- Antes de responder, e se o senhor permite, vou lhe fazer, não propriamente um pedido, mas uma sugestão quando vier jantar.
- Pois não.
- Não precisa trazer relógio quando vier jantar.
- Não entendo.
- Estamos sugerindo aos nossos fregueses que façam este pequeno sacrifício.
- Mas o senhor podia explicar...
- Sem querer meter o nariz no que não é da minha conta, gostaria também que trouxesse pouco dinheiro, ou antes, nenhum.
- Agora é que não estou pegando mesmo nada.
- Coma o que quiser, depois mandamos receber em sua casa.
- Bem, eu moro ali adiante, mas e outros, os que nem se sabe onde moram, ou estão de passagem na cidade?
- Dá-se um jeito.
- Quer dizer que nem relógio nem dinheiro?
- Nem jóias. Estamos pedindo às senhoras que não venham de jóia. É o mais difícil, mas algumas estão atendendo.
- Hum, agora já sei.
- Pois é. Isso mesmo. O amigo compreende...
- Compreendo perfeitamente. Desculpa ter custado um pouco a entrar na jogada. Sou meio obtuso quando estou com fome.
- Absolutamente. Até que o amigo compreendeu sem que eu precisasse dizer tudo. Muito bem.
- Mas me diga uma coisa. Quando foi isso?
- Quarta-feira passada.
- E como foi, pode-se saber?
- Como podia ser? Como nos outros lugares; no mesmo figurino. Só que em ponto menor.
- Lógico, sua casa é pequena. Mas levaram o quê?
- O que havia na caixa, pouquinha coisa. Eram 9 da noite, dia meio parado.
- Que mais?
- Umas coisinhas, liquidificador, relógio de pulso, meu, dos empregados e dos fregueses.
- An. (Passei a mão no pulso, instintivamente).
- O pior foi o cofre.
- Abriram o cofre?
- Reviraram tudo, à procura do cofre. Ameaçaram, pintaram e bordaram. Foi muito desagradável.
- E afinal?
- Cansei de explicar a eles que não havia cofre, nunca houve, como é que eu podia inventar cofre naquela hora?
- Ficaram decepcionados, imagino.
- Não senhor. Disseram que tinha de haver cofre. Eram cinco, inclusive a moça de bota e revólver, querendo me convencer que tinha cofre escondido na parede, no teto, embaixo do piso, sei lá.
- E o resultado?
- Este - e baixou a cabeça, onde, no cocuruto, alvejava a estrela de esparadrapo.
- Oh! Sinto muito. Não tinha notado. Felizmente escapou, é o que vale. Dê graças a Deus por estar vivo.
- Já sei. Sabe que mais? Na polícia me perguntaram se eu tinha seguro contra roubo. E eu pensando que meu seguro fosse a polícia. Agora estou me segurando à minha maneira, deixando as coisas lá em casa e convidando os fregueses a fazer o mesmo. E vou comprar um cofre. Cofre pequeno, mas cofre.
- Para que, se não vai guardar dinheiro nele?
- Para mostrar minha boa-fé, se eles voltarem. Abro imediatamente o cofre, e verão que não estou escondendo nada.. Que lhe parece?
- Que talvez o senhor precise manter um estoque de esparadrapo em seu restaurante.


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