CLARICE LISPECTOR
UCRÂNIA,1920 = BRASIL, 1977
Restos De Carnaval
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele
pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam
fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta
do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se
divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza
para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se
tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao
constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo
sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas
era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda
suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do
meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no
contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes
e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os
mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente
dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse
dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha
resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para
isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais,
suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia
pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel
crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias
mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples
acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga -
talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez
por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma
fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela
primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu
mesma.
Até os preparativos já me deixavam
tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga
e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se
chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo
vestidas - à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores
femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha
- mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só
existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que
sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele
carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no
domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado
pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim!
Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti
de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram
tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender
agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu
estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e
ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço
repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na
farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a
máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo,
correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A
alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em
casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha
morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que
encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma
rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era
uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de
sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do
estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a
salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um
menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito
bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e
sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos
nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos,
considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era,
sim, uma rosa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário