ITABIRA-MG = 1902-1987
Debaixo Da Ponte
Moravam debaixo da ponte.
Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles
moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a
ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam
conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta
dágua, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham;
podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte
alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa.
Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los,
fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.
À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem
ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia
para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito
disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato.
Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que
morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma
grande posta de carne.
Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não
basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de
certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte,
e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo
diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro,
supermercado para quem sabe freqüentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e
olfativa ciência.
Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo
gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto
de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode
tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para
debaixo da ponte.
Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo
da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a
carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia
dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer
complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.
Dores que foram aumentando, mas podiam ser
atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se
alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois
morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne,
dizem outros que do sal, pois era soda cáustica.
Há duas vagas debaixo da ponte.
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