A
Morte Segundo Nelson Rodrigues
A morte é anterior a si mesma. Começa antes,
muito antes. É todo um lento, suave,
maravilhoso processo. O sujeito já começou
a morrer e não sabe.
Morrer significa, em última análise, um pouco de
vocação. Há vivos tão pouco militantes
que temos vontade de lhes enviar coroas
ou de lhes atirar na cara a
última pá de cal. Esses, sim, têm a vocação da
morte.
Há, em qualquer infância, uma antologia de
mortos.
Na hora de morrer, e quando sabe que está
morrendo, todo homem tem um olhar de contínuo.
Há na morte por intoxicação alimentar um
inevitável toque humorístico,
que humilha o cadáver e compromete o velório.
Para mim, qualquer morta tem mais densidade do
que qualquer morto.
A morte natural é própria dos medíocres. O
medíocre tem de fazer uma força tremenda
para morrer tragicamente. Ele morre de
gripe, de pneumonia ou da empada que
matou o guarda. Já o grande homem sempre
morre tragicamente. Veja
o caso de Lincoln, de Gandhy, de Kennedy.
Há uma inteligência da morte, assim como há uma
bondade da morte. O
que vai morrer já olha as coisas, as pessoas, com a doçura
do
último olhar. Eu diria que é a saudade antes do adeus.
O sujeito procura esquecer que o homem é também o
seu próprio cadáver. E ele,
queira ou não, não destruirá jamais a sua vocação
para a morte.
Nada mais falso do que o medo de morrer, e eu
diria que nós fazemos tudo para
morrer o mais depressa possível. Os nossos
hábitos, os nossos usos, os nossos
vícios, as nossas irritações mal disfarçam a
vontade, a urgência, a fome da morte.
Chegou às redações a notícia da minha morte. E os
bons colegas trataram de fazer
a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os
necrológios, com a generosa
abundância de todos os necrológios, sou de fato um
bom sujeito.
A morte é um grande despertar.
Do livro
"Flor de Obsessão", Reunião das 1000 melhores frases de Nelson
Rodrigues
Seleção e organização: Ruy Castro / Companhia das Letras - 1997 Paginas 110.
Seleção e organização: Ruy Castro / Companhia das Letras - 1997 Paginas 110.
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