MANUEL BANDEIRA
RECIFE-PE =
1886-1968
Os Maracatus De Capiba
Uma das mais fortes impressões que guardo do tempo da
meninice foi o meu primeiro encontro com um maracatu. Era terça-feira gorda e
eu ia para a rua da Imperatriz, no Recife, assistir de um sobrado à passagem
das sociedades carnavalescas – Filomonos, Pás, Vassourinhas… De repente, na
esquina da rua da Aurora, me vi quase no meio de um formidável maracatu. De que
nação seria? Porto Rico?
Cabinda Velha? Leão Coroado? Não me lembra. Dos melhores era, a julgar pelo
apuro e dignidade do rei, da rainha e seu cortejo – príncipes, damas de honra,
embaixadores, baianas.
Pasmei assombrado. Tudo o mais, em volta de mim, era
carnaval: aquilo, não. Mas o que é que me fazia o coração pulsar assim em
pancadas de medo? Analisando agora, retrospectivamente, o meu sentimento, creio
que o motivo do alvoroço estava na música, naquela música que mal parecia
música, – percussão de bombos, tambores, ganzás, gonguês e agogôs, num ritmo
obsessor, implacável…
Mesmo de longe, lembro-me de certas noites em que, na
velha casa de Monteiro, a virada trazia uns ecos do batuque, o ritmo dos
maracatus que invocava.
Todas essas memórias dos meus oito anos, impagáveis
como o cheiro entre-mar-e-rio dos cais da rua da Aurora, buliram em mim, mais
vivas do que nunca, à leitura do livrinho, É de Tororó, primeiro de uma série,
Danças pernambucanas, com o qual Arquimedes de Melo Neto, diretor da Editora da
Casa do Estudante, acaba de enriquecer a nossa literatura musical.
A coleção é organizada e dirigida por Hermilo Borba
Filho. Nesse primeiro volume, colaboram Ascenço Ferreira, o grande poeta do
Nordeste, e Ariano Suassuna. Ascenço expõe a origem dos maracatus e como eles,
destacando-se do grupo das festas dos Reis Magos (coroação dos reis das nações
negras exiladas no Brasil), entraram para o Carnaval, como os temas de evocação
da pátria perdida vieram sendo substituídos pelos de acontecimentos
contemporâneos; e, finalmente, como eles têm degenerado no Recife por se
afastarem da velha tradição. Ariano Suassuna escreve substancioso ensaio
crítico sobre a obra de Capiba. Na verdade, o livrinho é uma coleção de
maracatus de Capiba, ilustrada pelos estudos de Ascenço e Suassuna e pelos
desenhos de Lula Cardoso Aires e Perci Lau.
Mas quem é Capiba? Capiba é o apelido de Lourenço da
Fonseca Barbosa, pernambucano de Bom Jardim, criado na Paraíba, músico desde
menino na banda regida pelo pai, o “professor Capiba”. Quando voltou ao Recife,
homem feito, foi para se tornar o compositor popular mais festejado com os seus
frevos-canções, sambas, valsas e maracatus.
Informa-nos, porém, Suassuna, que Capiba não parou
aí. Procurou transpor o popular para a música erudita. Assim, usou do ritmo do
frevo no primeiro movimento de uma sua sonata para violoncelo e piano, escreveu
toda uma série de Canções nordestinas onde se utilizou das formas englobadas no
litoral sob o nome de “moda”, e fixou temas da música negra em batuque e numa
Suíte nordestina, esta última transcrita, depois, para orquestra por
Guerra-Peixe.
Nada conheço de tudo isso. E mais – que mau
pernambucano que sou! – ignorava o próprio nome de Capiba. No entanto, vejo que
Suassuna dá como “a mais audaz e mais musicalmente perfeita” entre as canções
do compositor nordestino aquela que tem por letra a tradução que fiz de um
pequenino poema de Langston Hughes. O fragmento transcrito deixou-me com água
na boca…
Dez são os maracatus de Capiba apresentados nesta
coleção. Três letras são de Ascenço, as demais são do mesmo Capiba. De todos
eles, o que me empurrou para mais perto da minha visão no cais da rua da Aurora
foi Eh! Luanda! Reconheci longe nos acordes da mão esquerda aquele ritmo
obsessor, implacável pressago a que me referi atrás. Está ele também, mas
mitigado, quase caricioso, em É de Tororó, onde, no quinto compasso, há uma
sétima abaixada que é uma pura delícia. Esses dois e mais Cadê os guerreiros e
Onde o sol descamba, este com um tema que figura igualmente na Dança de negros
de Camargo Guarnieri, são os que me pareceram mais originais. Todos, aliás, tem
o mesmo sabor forte de Nordeste.
Bandeira, Manuel. “Os
maracatus de Capiba”. Folha de Minas, 30 de agosto de 1958
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