CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-MG =
1902-1987
O Velho
Vocês não acreditam, mas também este cronista costuma ir ao
Banco, e não só para pagar contas de luz, gás, telefone. Vai conversar com o
Gerente - um gerente simpático, desses que não coçam a orelha quando a gente
propõe uma reforma de título. Mas quem sou eu para pleitear tamanha mercê?
Procuro o Gerente para conversar sobre amenidades, e ele me ouve com paciência
e atenção. Até me conta coisas de seu filho, o Escritor. O Escritor tem três
anos e escreve literalmente em todas as paredes da casa. Fareja livros com
gravuras e sem gravuras e aprende coisas que eu, possivelmente, ignoro. A
curiosidade intelectual do Escritor é insaciável. Assim fazemos do Banco, sem
prejuízo dos interesses bancários (pois o Gerente é uma fera para trabalhar no
meio das maiores apoquentações), um lugar de grato repouso.
Ontem o gerente estava tão assoberbado de clientes, papéis,
telefonemas, recados, que não tive coragem de me aproximar. Fiquei à espera na
poltrona, ao lado de dois rapazes que também esperavam. Esperavam e conversavam
sobre política, inflação, Copa do Mundo.
– E como vai teu velho?
– Meu velho? Respondeu o outro. – Aquele vai sempre bem.
Melhor do que eu, você e todo mundo.
– Qual a última dele?
– Não tem última. Todas são novas e contínuas. Aos
sessent’anos – sessenta e lá vai fumaça – nada, corre, entra em pelada, monta,
joga vôlei e só não rema porque não encontra companheiros com a mesma fibra,
para disputar regata. Enquanto isso, fuma e bebe.
– E... no resto?
– No resto ele é ainda de goleada. Parece mentira, mas as
mulheres adoram o Velho, e ele capricha para dar conta do serviço.
– Quantas vezes ele já casou?
– Perdi a conta. Quatro ou cinco, se não me engano. Ou
seis. O extraordinário é que nenhuma das ex se queixa dele, todas que conheço
continuaram suas amigas e, de um modo ou outro, dão a entender que o desempenho
dele é cem por cento. Sabe de uma coisa?
– Sei. Você tem inveja dele.
– Tenho. Pra que mentir? Meu primeiro casamento não deu
certo, o segundo menos ainda. Então desisti, agora sou free-lancer. Mas
com o Velho é diferente. Todos os casamentos funcionaram.
– Então, por que acabaram?
– O Velho tem uma teoria que casamento não pode esfriar,
vira rotina. Antes que isto aconteça, ele passa uma conversa manhosa na gatona
– é especialista em gatonas – e o último episódio da novelinha é vivido sem
choro nem briga. Um sábio.
– Um mestre.
– É como eu costumo chamá-lo. Ele responde que não tirou
diploma e que todo mundo se for habilidoso, tira de letra. Tem dia que chego a
me preocupar: “Mestre, olha essas coronárias!” Ele ri, não dá confiança em
responder. “Mestre, não tem medo de negar fogo?” Aí então nem se dá ao trabalho
de me olhar; faz que não ouviu. O Nuno, meu irmão mais velho – irmão de pai e
mãe, do primeiro casamento -, fica besta de ver tanta resistência, e diz que o
Velho não existe, que nosso pai é Energia Cósmica em pessoa.
– E teus outros irmãos?
– Os outros? Deixe ver... Somos quatorze irmãos, espalhados
no mundo. Todos adoram o Velho, aliás o Nuno também. Falei quatorze, mas só
Deus sabe quantos haverá por aí, desconhecidos da gente. Nem o Velho sabe.
– Algum de vocês puxou a ele na vitalidade?
– Uns fazem força, não creio que consigam. Esse negócio não
comporta imitação. Ou bem que o cara nasceu com alegria de viver e gozar a
vida, ou nasceu sem isso, e não tem vitamina que ajude. Claro que sempre há
margem para performances individuais brilhantes, e o normal é a gente
ser bem-sucedida – até certo ponto, o ponto X. Mas o Velho excede a marcação.
Nunca vi ninguém tão identificado com o mundo, a mulher, as coisas agradáveis
da vida. Sem contar vantagem – isso é importante. Não se vangloria de nada.
Vive plenamente.
– Quer dizer que ele dá nó até em pingo d’água?
– Não faz outra coisa. Bem, vou indo. Nosso amigo Gerente
ainda não se desvencilhou daquele cara, e eu prefiro voltar depois.
– Espera mais um pouco.
– Não posso. Tenho de ir a um batizado.
– Essa não!
– O Velho está me esperando. Me escolheu para padrinho do
seu rebento mais novo. Tenho um irmãozinho de dois meses, não te contei ainda? Ciao.
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