ANTÔNIO MARIA
RECIFE-PE =
1921-1964
Permite que eu deseje, agora, tomado e vencido pelas urgências que de mim
exigem, um canto de sono e preguiça onde ainda não se tenham inventado o
telefone e o relógio. Deixa que eu seja pessoal em mais uma crônica para, ao
medo das tarefas que se me impõem, querer, ardentemente, que não tirem do rol
das pessoas úteis, que me esqueçam e que me abandonem, que me larguem, enfim,
onde seja lícito viver ignorado e despercebido. Sinto-me vazio de poesia,
esgotado de um resto de doçura que tanto prezava e, coagido pelos que revendem
minhas idéias, dói-me o tempo e o esforço gastos, os ardis e os truques que
emprego para arrumar palavras e construir frases de efeito. Lamento enganar a
todas. Permite que eu deseje, agora, um silêncio que me contagie de tristeza, uma
calma boa e definida para, num momento espontâneo e sossegado, escrever as
grandes definições, as palavras que me envaideçam, os versos e as cantigas que
me elevem, querida, à glória e à resolução do teu desmesurado amor. Através
dessa janela vejo coisas que, antigamente, eram poderosas e fecundas. O céu
repete o azul de tantas tardes acontecidas em maio, as últimas quaresmeiras do
verão agonizam na saia do morro, os homens martelam a pedreira... e eu não
sinto vontade de rir ou de chorar. Na rua, arrastando uma corrente eterna e
incompreensível, passa mais um caminhão da Standard Oil... e eu não sinto
nenhum vexame político, nenhuma revolta social. Por isso e pela descrença que
em meu espírito se acentua, permite que eu deseje ser só — ou teu somente — num
lugar do mundo onde os gritos não tenham eco, onde a inveja não ameace, onde as
coisas do amor aconteçam sem testemunhas. Livrem-me da pressa, das datas, dos
salários e das dívidas e a todos serei agradecido, num verso submisso.
Livrem-me de mim, de uma certa insaciabilidade que apavora e de todos serei
escravo numa humilde canção. Permite que eu só queira, agora, esse canto de
sono e preguiça, onde não necessite dos atletas, onde o céu possa ser céu sem
urubus e aviões, onde as árvores sejam desnecessárias, porque os pássaros se
sintam bem em cantar e dormir em nossos ombros.
31/05/1963
Texto
extraído do livro "Com Vocês, Antônio Maria",
Editora
Paz e Terra - Rio de Janeiro, 1964, pág. 225.
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