sábado, 22 de dezembro de 2012

ULISSES LINS DE ALBUQUERQUE


ALIMENTAÇÃO NO SERTÃO PERNAMBUCANO
(Tópico do livro em que Ulisses Lins de Albuquerque – também poeta e historiógrafo – faz um curioso levantamento de paisagens e de casos do sertão pernambucano)


Dias depois eu me despedia da velha fazenda, onde Siá Santa dominava, impondo-se pela bondade à afeição daquela gente que ali morava há muitos anos, pela lhaneza de seu trato e pela grandeza de coração.
Parece-me estar a vê-la, bem branca, feições fidalgas, sempre com um lenço branco amarrado à testa – ela me dizia que, se o retirasse, sentia tonturas... – com um molho de chave preso à cintura, indo e vindo de casa para as casinhas de dependência, ao fundo, dando ordens à boa preta Rita – de feições fidalgas – sua cozinheira, e às auxiliares, chamando-nos para as refeições, nas quais, além da coalhada, nas épocas de inverno, ou da umbuzada – quando os umbuzeiros estavam carregados de frutos (a safra do umbu – ou imbu – vai de janeiro até quase abril), o prato invariável, no almoço, era o xerém de milho, para dar melhor sabor à carne assada na grelha ou cozida na panela; no jantar, o feijão era obrigatório, com a farinha de mandioca; e à noite, na ceia, quando não se servia também a coalhada ou a umbuzada, dominava o mugunzá (de milho) e o xerém com leite, ou o jerimum, também com leite.
O queijo de coalho e o de manteiga (de fogo), era abundante nos meses em que, no inverno, a vacaria enchia o curral. A buchada, servida no segundo dia após o sacrifício do carneiro ou do bode, era, como é ainda, a grande novidade nos almoços sertanejos. E a panelada, que aparecia quando se abatia uma rês.
O pão de milho – cuscuz – tão comum no sertão, não era usado em casa de minha avó. Entretanto, na fazenda de padrinho Ezequiel, era o prato da ceia – com leite.
O xerém era feito do milho quebrado num "moinho" (uma pedra redonda, puxado por um torno, girando sobre a outra); o milho do mugunzá era desolhado no pilão, no qual também era pisado o café torrado.
Para refeições avulsas, Rita preparava a paçoca (carne pisada com farinha), o pirão de galo (com ovos) e a mal-assada, de ovos com a manteiga de leite de vaca. (O fubá de milho, adocicado com rapadura, era muito apreciado na fazenda, especialmente misturado com o leite.)
Sobremesa (nem sempre): mel de rapadura ou de abelha, e, por vezes, de engenho, vindo de alguma engenhoca de Pajeú – município de Afogados da Ingazeiras – ali próximo; e, às vezes, xerém com rapadura, ou rapadura com farinha. Fruta nunca! Nesse particular, o descaso entre os sertanejos naquela região do Moxotó era absoluto. O exemplo deixado por Antônio de Siqueira, que possuía o seu pomar de cajueiros, goiabeiras e bananeiras, não fora seguido. Apenas minha avó possuía uma horta de pinheiras, bem como minha mãe plantara uns mamoeiros e goiabeiras, cujos frutos eu açambarcava, devorando-os, colhidos ao pé das fruteiras...
Entretanto, às vezes vinham mangas, goiabas e bananas daquela zona do Pajeú, onde havia açudes na maior parte das fazendas, cujos proprietários plantavam árvores frutíferas e cultivavam a cana-de-açucar que moíam nos seus engenhos, alguns de ferro, puxado a bois.
Os meninos – eu inclusive – recorriam às frutas silvestres, algumas saborosas: a quixaba, a pitomba, o umbu, o jatobá, o juá, o araçá... E, se elas são portadoras de vitaminas – nome inventado por aquele médico polonês e que "vem do latim vita, vida, e da terminação amina, composto de hidrogênio e azoto" – posso garantir que os meninos criados nas caatingas sertanejas as armazenavam em profusão, no meu tempo...



(
ULISSES LINS DE ALBUQUERQUE (SERTÂNIA-PE  =  1889 / 1979)

Nenhum comentário: