RAYMUNDO
SILVEIRA
MASSAPÊ-CE = 1944
A Aula
—
Você aí.
—
Eu?
—
Sim você mesmo que estava cochilando.
—
Pois não. Desculpe-me, Professor.
—
O que foi que acabei de dizer?
—
O senhor falava sobre o idealismo absoluto de Kant e o idealismo fenomênico de Hegel.
—
E o senhor não acha isto importante? Prefere se curvar sobre a mesa e fingir que
estava dormindo?
—
Peço desculpas, Professor, mas o senhor inverteu os postulados dos filósofos
alemães. Por isto preferi disfarçar a fim de evitar escutar um equívoco ou vir a
ter de cometer a insolência de corrigi-lo.
—
O senhor fique de pé e explique para toda a classe qual foi o equívoco que eu cometi.
—
Bem, já que o senhor mesmo me constrange a falar aquilo que eu queria evitar,
na verdade, o idealismo fenomênico de Kant alcança logicamente o seu vértice metafísico.
Em Hegel, ao contrário do que o senhor acabou de afirmar, há toda uma fidelidade
aos aspectos históricos do romantismo. Hegel concebe a realidade como uma
evolução no sentido do "vir a ser" a qual ele racionaliza elevando a
sua proposição a um pretenso status dialético.
Se
naquele instante caísse uma pena no chão da sala de aulas se escutaria um estrondo.
—
É verdade. Eu me enganei. Quem pede desculpas sou eu. Qual é mesmo o seu nome?
—
Manuel da Conceição da Silva Pereira, Professor.
—
Manuel, muito obrigado. Mas vou lhe dar um conselho. Cuidado para não reprisar
este episódio diante de outros professores. A maioria não é tão tolerante quanto
eu. Certamente interpretaria as suas palavras como uma ousadia ou tentativa de
humilhação.
—
Peço desculpas mais uma vez, Professor, porém quando fui interpelado estava
quase dormitando. Só falei porque o senhor assim o ordenou.
—
Boa noite e até a próxima aula.
—
Senhor Manuel da Conceição da Silva Pereira, já que o senhor é tão sabido, explique
para mim e para os seus colegas em que consiste, essencialmente, o pensamento
niilista de Schopenhauer e quais as suas próprias reflexões a respeito das
idéias dele.
—
Não sou tão sabido, Professor. Apenas gosto de ler e não posso evitar que aquilo
que incorporo à minha memória e ao meu raciocínio seja apagado no meu cérebro
como se fosse um programa de computador passível de ser deletado.
—
Dispenso as suas ironias. Responda ao que lhe perguntei.
—
Bem, o niilismo – ou pessimismo, como queiram – típico de Schopenhauer poderia
ser resumido na seguinte premissa: quem deseja, sofre; quem vive deseja, logo a
vida é dor.
—
Para o senhor toda a filosofia de Schopenhauer está contida nesta simples sentença?
—
Absolutamente não, Professor. Quis apenas ser conciso a fim de não estorvar o
bom andamento da aula.
—
O senhor não estorva, pelo contrário. Todos estamos ansiosos para ouvir tão sábio
filósofo.
—
Não sou sábio filósofo, professor, como disse...
—
Chega! Fale mais sobre Schopenhauer. O que ele quis dizer quando interrogou:
"Por que há simplesmente o ente e não antes o nada?"
—
Este pensamento é de Martin Heidegger, Professor, não de Schopenhauer. E, pelo
que eu saiba, não se trata exatamente de uma interrogação. Ele quis se referir...
—
Basta, seu insolente! As minhas aulas o senhor não freqüentará mais. Retire-se agora
mesmo da sala de aulas.
—
Retiro-me, sim, Professor. Mas não porque o senhor está ordenando, pois não há
nenhum artigo no regimento desta escola que me obrigue a cumprir tal determinação.
Retiro-me porque, infelizmente, sou obrigado a viver num país onde a educação é
tratada com a mesma importância que é dada à coleta do lixo. Retiro-me porque
me recuso a desaprender o que aprendi estudando com grande dificuldade enquanto
o senhor talvez estivesse a caçar apenas um diploma para tentar ganhar dinheiro
com facilidade. Retiro-me, enfim, para evitar que o senhor seja humilhado a cada
vez que abre a boca para falar bobagens. Passar bem.
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