FERNANDO BONASSI
MOOCA-SP 1962
Corações Vagabundos
O carro dobrou na Cesário Mota Jr., e Cibele logo percebeu que era o homem esquisito. Já passava de seis meses agora. Toda semana. Toda sexta-feira à noite. Nove horas em ponto o sujeito aparecia. Banho tomado, roupa passada. Ele vinha escorregando com o carro pro lado dela. Parava, mas deixava o motor ligado. Destravava a porta. Às vezes dizia alguma coisa.— Boa noite.
— Boa.
Às vezes, nem isso... Mas sempre aquele cheiro de água de
colônia. Enjoativo. Cibele sentia falta de ar. Procurava pelo botão do vidro.
Não achava. Não tinha coragem de perguntar onde ficava. Contava até dez.
Passava.
— Aposto que eu sei onde a gente vai...
— Aposto que eu sei onde a gente vai...
O homem fez que sim com a cabeça. Ele a levava pra comer
frango à passarinho com caipirinha em Pinheiros. Bebiam e comiam em silêncio
aquelas irresistíveis desgraças cheias de gordura até perderem o juízo. Ela não
conseguia se controlar. Depois pediam sobremesa. Ela simplesmente não conseguia
se controlar! E ainda tomavam cafezinho: — Sem açúcar, por favor...
Ele pagava e a deixava no mesmo lugar. Pagava o preço mais
caro. Perguntou na primeira vez: — Quanto é pra fazer tudo?
Ela caprichou. Ele tirou o dinheiro do bolso. Não tinha
muito mais do que ela pedira, mas fez questão de acertar antes. De lá pra cá
era sempre igual. Uma vez perguntou: — Teve aumento?
Cibele não teve coragem. Pediu o de sempre. Portanto ele
podia fazer tudo o que quisesse, mas sempre a devolvia na mesma esquina.
"Sem um arranhão!", como costumava dizer às amigas. Toda semana. Toda
sexta-feira, entre 11 e 11 e meia estava de volta ao ponto. Menos mal, pensava
a mulher, que ainda contava com todo o movimento da madrugada pra aproveitar.
Aproveitava mesmo, que Cibele não fazia questão de prestar e tinha muitos
planos; mas aquele homem... Não sabia se tinha vergonha... Ou pena. O coração
dela ficava espremido. Ruminava as razões dele. Passava a semana com esse troço
por dentro. Não chegava a lugar nenhum.
Até esse dia tinha ficado quieta, mas, no restaurante, quando ele perguntou o que ela queria, Cibele pôs a língua pra fora e disse:
Até esse dia tinha ficado quieta, mas, no restaurante, quando ele perguntou o que ela queria, Cibele pôs a língua pra fora e disse:
— Você.
O garçom se fez de morto. Era um bom garçom. Ficou
brincando de estátua com a caneta e o bloquinho. Passou um bom tempo assim,
porque o homem deu uma risada comprida e só então virou pra pedir:
— Duas caipirinhas de pinga e um frango à passarinho.
O garçom se afastou e a mulher continuou provocando:
— Você gosta de beber, né?
— É bom, fica tudo mais fácil...
— Devia comer de vez em quando.
Dessa vez o homem não riu.
— Você é casado?
— Hum-hum.
— Mentira. Se fosse casado a tua mulher ia desconfiar da
rotina.
— Não é uma questão de confiança.
— Ela é doente?
O homem voltou a rir.
— Você é doente?
— Não.
— Gay?
Chegou o pedido. Cibele ficou desacorçoada. Costumava dizer
que se um dia fosse executada, frango à passarinho seria sua última refeição.
Tentou escolher um pedaço bem sequinho. Difícil. Ficou mordiscando. Depois
pegou mais. E foi pegando, querendo morrer. Seus lábios brilhavam quando
perguntou:
— Eu não sou boa pra você?
— Eu não sou boa pra você?
O homem teve a coragem de fazer Cibele esperar que pegasse
um cigarro do maço, tirasse caixa de fósforos do bolso da calça, um palito de
dentro dela, acendesse esse maldito cigarro e só então se dignasse a responder:
— Você é a melhor coisa da minha semana.
— Você é a melhor coisa da minha semana.
— "Coisa"?!O homem bufou diante da mulher,
levantou a palma da mão pro garçom e fez que escrevia nela com um dedo. Cibele
ficou pescando os restinhos de alho da bandeja.
— Você me engorda.
Cibele fechou a cara. De cara fechada esperou que o homem
pagasse a conta e a levasse de volta à esquina de sempre. Nessa noite Cibele
não sentiu o enjôo da água de colônia quando ele se debruçou nela pra destravar
a porta. Desceu e ficou de costas. O homem baixou o vidro. "Aqueles
botões...”
— Até sexta-feira...
Cibele pensou em ofender, mas quando virou, aquele homem
esquisito estava bem ali... Ela sem saber se era vergonha ou pena... O coração
espremido...
— Tá bom, te espero aqui.
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