MILLÔR
FERNANDES
RIO DE
JANEIRO-RJ = 1924-2012
Ser Gagá
Ser Gagá não é viver apenas nos idos do
passado: é muito mais! É saber que todos os amigos já morreram e os que teimam
em viver, são entrevados. É sorrir, interminavelmente, não por necessidade interior,
mas porque a boca não fecha ou a dentadura é maior do que a arcada.
Ser Gágá é ficar pensando o dia inteiro
em como seria bom ter trinta anos, vá lá, quarenta, ou mesmo, ó Deus, sessenta!
É ficar olhando os brotinhos que passeiam, com o olhar esclerosado, numa inútil
esperança. É ficar aposentado o dia inteiro, olhando no vazio, pensando em
morrer logo, e sair subitamente, andando a meia hora que o separa dos cem
metros da esquina, porque é preciso resistir. É dobrar o jornal encabulado,
quando chega alguém jovem da família, mas ficar olhando, de soslaio, para os
íntimos da coluna funerária. Ser Gagá é saber todos os mortos inscritos no Time,
em Milestones. Não é saber o Who is who, mas os WHEN. É só
pensar em comer, como na infância. E em certo dia passar fome as vinte e quatro
horas, só de melancolia. É, na hora mais ativa do mais veloz Bang-Bang,
descobrir, lá no terceiro plano, um ator antigo, do cinema mudo, e sentir no
peito a punhalada. É surpreender, subitamente, um olhar irônico que aderir à
bossa nova, falar "Sossega Leão" e morrer de vergonha ao perceber o
fora. É não querer, não querer, mas cada dia ficar mais necessitado de amparo
do que outrora. É ter estado em Paris, em 19. É descobrir, de repente, um
buraco na roupa e dar graça a Deus, por ser na roupa.
Ser Gagá é sentir plenamente que tudo
que se leu, que se aprendeu, que se viu e se viveu não vale nada diante do que
estua. Ser Gagá é estar sempre na iminência de ouvir em plena rua: "Olhe o
tarado!" É ficar contente em ver Chaplin e Picasso como os "mais
charmosos" de sessenta! É chamar de menina à quarentona. É ter uma
esperança senil dos cientistas. É reparar, nos mais jovens, o imperceptível
sinal de decadência. É ficar olhando o detalhe, nos amigos a lentigem nas mãos,
o cabelo que afina, a pele que vai desidratando. Ser Gagá é o orgulho vão de
ainda ter cabelo e poucos brancos! A vaidade tola de não ter barriga; a
felicidade de ter dentes próprios. É fazer grandes planos quinquenais que
espantam os jovens que acham cinco anos a própria eternidade, mas que o Gagá
sabe que voam como voaram tantos, tantos, tantos.
É se apegar, desesperadamente, pelo
tremendo impulso da existência, aos filhos, aos netos e aos bisnetos, embora
saiba que eles não o querem, que a convivência com eles é apenas parte e total
do egoísmo vital que o enterra. É sentir que agora, outra vez, está bem de
saúde. É sentir a saúde ocasional. É carregar o corpo o tempo todo. É sentir o
caixão no próprio corpo. É saber que já não há quem tenha prazer em lhe
acarinhar a pele. É já não ter prazer em passar a mão na própria pele. É
esquecer de coisas importantes e lembrar, sem saber por que, um gosto, um
calor, uma palavra há tempos esquecidos.
Ser Gagá é procurar com afã a
importância do cargo para de novo ser solicitado, embora pelo cargo. É sentir
que nada do que faça, espantoso que seja, terá a importância do feito de outro
homem, nos inícios da vida. Ser Gagá é quando dormir tarde se torna uma
loucura, resgatada em feroz resfriado que dura uma semana. É ter sabido francês,
e esquecido. É já não jogar xadrez como outrora! É olhar o retrato amarelado e
lembrar que fotógrafo usava magnésio. É dizer, como um feito, que ainda lê sem
óculos. É ouvir que alguém diz, quando passa na rua: "Inda está
firme!" É ficar galante e baboseiro na terceira taça de champanha. É casar
com uma mulher mais jovem e querer dar logo ao mundo a inegável prova de um
filhinho.
Ser Gagá é, num esforço mortal, aceitar
tudo que inventam, todas as idéias, as modas, a música, o ritmo de vida, mas
não deixar de dizer numa ironia profunda e amargurada. "Eu não
entendo". É sentir de repente o isolamento. É ficar egoísta, e
amedrontado. É não ter vez e nem misericórdia.
Ser Gagá é fogo. Ou melhor, é muito
frio.
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