MÁRIO SETTE
RECIFE-PE = 1886-1950
Os Velhos Médicos
Era uma classe nitidamente
distinta das mais a dos médicos no Recife de ontem.
Se hoje os doutores de curar se
misturam com o resto dos mortais a ponto de só serem reconhecidos pelo anel de
grau, antigamente até uma criança os destacaria de longe pelo tipo, pelo traje,
pelo modo de condução.
Um médico nunca deixava de ser um
senhor grave, de maneiras policiadas, vestindo um croisé preto, usando
uma cartola espelhante e trazendo no bolso de cima um termômetro aparecendo no
seu estojo de metal. E, quase sempre, andava num cabriolé.
Fora dessa representação
respeitável e reservada, pesada e escura, não havia jeito de ser médico, a
menos que não se quisesse ser tomado a sério. Surgisse um de paletó, bengalinha,
e estava perdido no conceito público. Não entrava numa casa nem para ver um
doente nem na hora da morte.
Um pelintra!
Demais, o médico, com ser o
aliviador dos males do corpo, era também o conselheiro nas doenças do espírito,
nos maus bocados da vida, nos descarrilamentos de uma moça, nas loucuras de um
filho, no virar de cabeça de uma esposa. Quando algum entrava num domicílio não
se poderia afirmar tratar-se de uma febre palustre ou de um sarampo, porque
talvez se tratasse de uma filha fugida ou de uma desarmonia do casal.
O amigo de confiança da família
intervinha também nesses delicados casos.
Muitos havia que aos clientes
antigos e bem amigos não tiravam conta. Contentavam-se com os presentes nos
dias de aniversários ou dos santos do seu nome. Uns botões para punhos, um
relógio de ouro, uma carteira com monograma, um peru, um bolo... Quando não
recebiam uma casa ou um cabriolé.
A visita do médico revestia-se da
maior solenidade. Alguém da casa o esperava na janela. E de repente o aviso: -
Lá vem o Dr. Adrião!
Era o tempo dos doutores Veloso,
Ermírio Coutinho, Carneiro da Cunha, Bruno Maia, Santa Rosa, Pontual, João
Paulo, Berardo, Batista de Carvalho, Pereira da Silva, Leopoldo de Araújo,
Barros Carneiro, Raul Azedo, Nunes Carneiro Curió e Silva Ferreira.
Desses antigos médicos ainda vive
o Dr.Simões Barbosa, uma das figuras mais cultas e simpáticas da classe. Quem
não se lembra do seu freqüentadíssimo consultório no Largo do Corpo Santo e da
sua intensa clínica domiciliária? Com o fraque bem talhado, o seu porte de
diplomata, o seu boulanger branco, o Dr. Simões se impunha pelos seus
conhecimentos médicos e pelo seu trato social.
O cabriolé parara no portão.
Descera o facultativo.
Transpondo o jardim com ares de
quem é familiar ao ambiente, abre uma porta, limpa os pés na capacho de coco
com um Entre em letras azuis, tira a cartola, entrega-a à copeira,
abraça a dona da casa, bater no ombro do compadre, afaga os rostos das meninas
que vira nascer e já estavam umas moças feitas. Levam-no em seguida ao quarto
do doente, o Juca.
- Ontem começou com uma dor de
cabeça, tremendo, todo encolhido, sem querer brincar... Demos um chá de
salgueiro com acônito, botamos um sinapismo... E a febre subindo. A noite
inteira sem pregar olhos, Por isso hoje Totônio mandou chamar o doutor.
Em roda tudo se prepara. O jarro
do lavatório cheio, a bacia de porcelana com água mudada, a toalha limpa,
sabonete novo. E todos de roupas cheirando a baús.
O médico bota o termômetro na
axila e tira o relógio do bolso. Enquanto espera, conversa com os pais. Gaba
uns sapotis que recebeu há dias.
Foram aqui do sítio.
Excelentes!
Depois indaga se têm ido ao Santa Isabel. A Companhia dramática é magnífica. O drama João José esteve soberbo. E A dama das camélias?!
Depois indaga se têm ido ao Santa Isabel. A Companhia dramática é magnífica. O drama João José esteve soberbo. E A dama das camélias?!
38 e meio. Ausculta o médico.
Tussa. Respire alto. A língua? Vamos ver a garganta.
Trazem uma colher de sopa.
Trazem uma colher de sopa.
Sai do quarto com o compadre. Não
é cousa de mais. Uma influenza. E na mesa de jantar onde já o espera uma folha
de papel almaço, um tinteiro e a caneta de pena nova, receita: óleo de rícino,
antipirina, xarope de tolu. Quando se levantar da cama: emulsão de Kleper.
Cuidado com o vento encanado.
O doutor reabotoa o croisé. Aceita um licor de jenipapo feito pela
comadre.
Dá ainda uma prozinha. E depois
faz despedidas. Novo abraço na dona de casa que lhe pergunta: - Ele pode tomar
um caldozinho de galinha?
- Hoje, não. Somente chá com
torradas. Deixe passar a febre.
Bota a cartola e sai.
O cabriolé roda à primeira
chicotada do boleeiro.
Sinhá Generosa, que criou o Juca,
diz para antiga patroa:
- Não vai só atrás de médico,
não, D. Iaiá. Dê ao menino, também, uns gargarejos de tansagem...
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