sábado, 24 de novembro de 2012

CRÔNICA = Ivan Ângelo


IVAN ÂNGELO
BARBACENA-MG  = 1936


Diálogo Difícil



Um Homem do interior esbarra no jargão de uma secretária

Se ultrapassar a barreira representada por uma secretária, quando se quer falar com um executivo ao telefone, já é um pouco complicado para urbanos costumados, que dirá quando vem alguém de longe, aonde não chegaram ainda certos truques do linguajar sempre polido daquelas que recebem dos patrões a ingrata missão de afastar em vez de aproximar
 – Financeira Saraiva, boa-tarde – diz a secretária.
 – Boa-tarde, moça. O doutor Saraiva está?
 – Quem gostaria?
 Para ouvidos traquejados pode estar ou pode não estar, depende de quem está falando. O verbo gostar no condicional joga o acesso ao doutor no terreno das possibilidades. Mas as palavras têm um sentido mais amplo do que julga quem faz uso delas no sentido particular.
 – Gostaria não é bem o causo. Eu vim mais por precisão do que por gosto.
 A resposta não servia a ela, que estava interessada no "quem" da pergunta. Já o interlocutor prestara maior atenção no verbo porque, para ele, essa era a palavra que fazia mais sentido na circunstância. A secretária voltou à pergunta dando ênfase na busca da informação que desejava:
 – Mas quem gostaria?
 – Gostaria de quê?
 Para fugir do impasse, a secretária resolveu usar a língua geral:
 – O que eu estou perguntando é qual é o seu nome. Quer dizer: quem gostaria de falar com ele?
Aí, para o homem do interior, já era quase uma questão. E ele tornou, muito polido, mas marcando opinião:
– Uai, mas, se eu perguntei primeiro se o doutor Saraiva está, a senhora tinha de me responder primeiro, antes de rebater com outra pergunta, não é não? Eu penso assim.
– Como é que vou encaminhar o senhor sem saber o seu nome?
– Posso até dar o nome, mas eu não disse que queria falar com ele. Só perguntei se ele estava...
A secretária, com a objetividade da profissão tentou contornar:
– O senhor quer falar com ele?
– Gostaria – ironizou o homem.
– Bom, então, por favor, o senhor pode me dizer o seu nome?
– Posso. É João Honorato.
Aí veio outra pergunta fatal das secretárias:
– De onde?
Para quem conhece os códigos, a pergunta significa: de qual empresa é o senhor, qual é o seu negócio? Para quem não conhece:
– De onde? Ah, sou de um lugar muito pequeninozinho perto de Barbacena, a senhora nunca deve ter ouvido falar: Desterro do Melo. Ouviu falar?
– Não, não ouvi – e lá veio outra pergunta do repertório: – É particular, senhor?
– Aí a senhora me pegou. O Desterro? Particular?
– O assunto, senhor, é particular?
– Ah, bom. Por enquanto, é. Daqui a pouco tá na boca do povo.
– Pode adiantá-lo, senhor, para eu estar passando para o doutor Saraiva?
– Não, eu mesmo passo.
A secretária vencida e grilada contatou o patrão, que atendeu na maior presteza ao ouvir o nome de João Honorato. Foi uma conversa longa. Pela porta entreaberta ela ouviu duas risadas, apelos, promessas, regateios, garantias. agradecimentos. Depois o doutor Saraiva veio até ela:
– Dona Regina, o senhor João Honorato está vindo aí. Disse que teve dificuldade de entender a senhora. Pelo amor de Deus, fale simples com ele, como se ele fosse a sua mãezinha, o seu avozinho. De hoje em diante, por favor, não mais "quem gostaria?", "de onde?", "estar passando", "qual é o assunto". Ele acha que quem telefona sabe o que quer e com quem quer.
– Mas quem é esse João Honorato?
– O rei da soja. Agora é nosso patrão: vendi minha parte para ele nesse fim de semana.

Publicada na revista Veja, São Paulo, 16 maio 2001.

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