ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908
Um Ingrato
Vieira havia levado a vida inteira remando contra a
maré. Por fim conseguiu reunir algum dinheiro, não se sabe como, e abriu uma
modestíssima loja de cigarros na Rua dos Ourives. Dava para viver, mas, como se
sabe, não se precisa de muita coisa para viver. Morava com a mulher num
quartinho ao lado da modesta loja, e Dona Maricota cozinhava, lavava e passava
a roupa do marido e de alguns conhecidos, pois não tinham filhos.
Pensando na vida e esperando os clientes, Vieira
estava certo dia encostado no balcão da loja enquanto a mulher preparava o
almoço, como de costume, quando entrou apressadamente um velho, meio
congestionado, quase sem poder falar. Sentou-se num banquinho que ali havia,
queixando-se silenciosamente e apenas murmurando algumas palavras. O traje do
recém-chegado indicava pessoa de boa posição social. Solícito, Vieira indagou:
— Que tem o senhor, cavalheiro? O que aconteceu?
O velho levantou os olhos e só conseguiu dizer, com
voz apagada:
— Água!
Vieira foi imediatamente buscar um copo d’água, que
o velho bebeu, reanimando-se um pouco. E perguntou de novo:
— O que aconteceu?
— O que aconteceu?
— Não sei... Uma coisa que me deu de repente... Mas
felizmente não foi nada, como o Sr. pode ver. Bastou esse copo d’água para
sentir-me bem.
— Não quer alguma outra coisa? Talvez um pouco de
água com limão...
— Não, nada. Muito obrigado.
O velho permaneceu ainda ali uns vinte minutos,
conversando amistosamente com Vieira, perguntando-lhe sobre seus negócios, sua
família, sua vida. Quando saiu, apertou-lhe com vigor a mão, renovando seus
agradecimentos.
Dois dias depois apareceu novamente, sentou-se no banquinho e fez novas demonstrações de agradecimento, conversando amigavelmente durante meia hora.
Dois dias depois apareceu novamente, sentou-se no banquinho e fez novas demonstrações de agradecimento, conversando amigavelmente durante meia hora.
Voltou no dia seguinte, e Vieira lhe apresentou
Dona Maricota, com quem simpatizou bastante. Inteiraram-se então de que o
assíduo visitante era o Comendador Matos, negociante aposentado, solteiro e sem
filhos, que vivia de rendas, sem outra ocupação além da cobrança dos aluguéis e
da renda dos altos negócios. Quando o Comendador saiu, Vieira disse à esposa:
— Parece que esse sujeito está disposto a vir aqui
todos os dias, para entreter-se em conversa.
— É uma amizade que não devemos desprezar —
respondeu a mulher, de espírito prático.
— Por quê?
— Que pergunta! Pode ser que encontremos nesse
homem um protetor...
— Que protetor coisíssima nenhuma! Um passatempo
aborrecidíssimo, é o que você deve dizer. Não percebeu que ele nem sequer fuma?
Não comprou até agora nem uma caixa de fósforos...
Entretanto, quando o Comendador voltou no dia
seguinte, encontrou uma cadeira, no lugar do banquinho.
Precisamente nesse dia ficaram estabelecidas
definitivamente as relações de amizade. A partir desse momento o velho foi
infalível, sempre chegava na mesma hora. Não se passou muito tempo, e começou a
ser-lhe oferecida durante a visita uma xícara de café, que se tornou um hábito
durante os seguintes cinco anos.
Quando não aparecia na hora de costume, Dona
Maricota se inquietava:
— O Comendador não veio. Estará doente? Por que não
vais à casa dele? Pode ser que esteja doente, não acha?
Afinal o velho entrava, e Vieira avisava à mulher:
Afinal o velho entrava, e Vieira avisava à mulher:
— Já está aqui o Comendador, Maricota. Traga já o
cafezinho...
As relações chegaram a ser tão estreitas, que uma
vez Vieira queixou-se da falta de freguesia. O velho lhe disse:
— É natural, pois você tem uma casa que não inspira confiança. Isto aqui não é uma verdadeira loja, é apenas um cubículo.
— Mas muitos começaram como eu, e acabaram ficando ricos.
— É natural, pois você tem uma casa que não inspira confiança. Isto aqui não é uma verdadeira loja, é apenas um cubículo.
— Mas muitos começaram como eu, e acabaram ficando ricos.
— Isso foi antigamente. Hoje em dia as lojas de
cigarros têm que estar bem instaladas, com pelo menos duas portas, boas
estantes, tudo bem ordenado e bem sortido.
— É bem verdade, mas tudo isso custa dinheiro, e
não vejo como possa consegui-lo.
— Não se preocupe por questões de dinheiro. Procure
uma casa melhor, em pleno centro, e deixe o resto por minha conta.
Com efeito, Vieira não demorou a encontrar um local apropriado. Alugou-o, tendo o próprio Comendador como fiador. Um mês depois o novo estabelecimento estava funcionando. Não faltava nada, havia até um acendedor de cigarros constantemente ligado, que os clientes podiam usar.
Com efeito, Vieira não demorou a encontrar um local apropriado. Alugou-o, tendo o próprio Comendador como fiador. Um mês depois o novo estabelecimento estava funcionando. Não faltava nada, havia até um acendedor de cigarros constantemente ligado, que os clientes podiam usar.
O casal mudou-se para o segundo andar do mesmo
imóvel, e o Comendador emprestou o dinheiro para a compra dos móveis. Quando
foi assinar os papéis, Vieira perguntou se o Comendador tinha interesse em ser
seu sócio.
— Nada disso! Eu me aposentei por completo dos negócios, e não tenho o menor desejo de voltar a eles. Serei simplesmente seu credor. Basta você assinar umas quinze promissórias, com juros muito reduzidos e prazos folgados.
Assim foi. Vieira resgatou as letras uma por uma, nos prazos estipulados. Sem esforço, pois a loja prosperava de maneira satisfatória. Dona Maricota já se entregava aos afazeres domésticos com mais parcimônia. Um dia notou que ia ser mãe, portanto uma nova felicidade em perspectiva.
— Nada disso! Eu me aposentei por completo dos negócios, e não tenho o menor desejo de voltar a eles. Serei simplesmente seu credor. Basta você assinar umas quinze promissórias, com juros muito reduzidos e prazos folgados.
Assim foi. Vieira resgatou as letras uma por uma, nos prazos estipulados. Sem esforço, pois a loja prosperava de maneira satisfatória. Dona Maricota já se entregava aos afazeres domésticos com mais parcimônia. Um dia notou que ia ser mãe, portanto uma nova felicidade em perspectiva.
— Quero ser o padrinho! — indicou o Comendador
quando foi informado.
O excelente homem já era considerado pessoa da
casa, seguindo sempre o seu próprio ritmo, tomando o cafezinho sentado no mesmo
local, já agora numa cadeira estofada, para mais comodidade.
A pontualidade com que foram pagas as quinze
promissórias fez aumentar a amizade do velho, pois colocava acima de tudo a
probidade comercial, a honra da firma. Quando o menino foi batizado, o padrinho
deu-lhe um bonito enxoval e fez para ele um seguro de vida. Desde então era
raro a criança não receber todos os dias um presente ou um agrado. De vez em
quando, Vieira e Maricota também eram obsequiados.
— Comendador, por que tantos cuidados? O senhor não
deve incomodar-se tanto conosco.
— Não me incomodo, absolutamente. Vocês são minha
única família. Não tenho ninguém mais no mundo, a não ser vocês.
— Bendito aquele copo de água! — dizia Dona Maricota, sempre que o velho tinha algum rasgo de generosidade.
— Graças àquele copo d’água mudou nossa sorte — acentuava o marido, — e espero que com o tempo ainda viremos a ser ricos.
— Bendito aquele copo de água! — dizia Dona Maricota, sempre que o velho tinha algum rasgo de generosidade.
— Graças àquele copo d’água mudou nossa sorte — acentuava o marido, — e espero que com o tempo ainda viremos a ser ricos.
Não sabendo como manifestar seu reconhecimento por
tão inverossímil proteção, Vieira mandou pintar a óleo um retrato do Comendador,
que colocou na sala de visitas.
Mas tudo se acaba. Um dia o comendador deixou de
aparecer na loja, que tão assiduamente visitava durante tantos anos. Vieira
correu imediatamente à casa onde morava, e o encontrou seriamente doente. Quis
levá-lo para sua casa, onde seria tratado com desvelo familiar, mas o
comendador resistiu. Era seu propósito recolher-se a um asilo para idosos, e
foi necessário respeitá-lo. A doença se agravou. Embora não lhe faltasse nenhum
dos recursos da medicina, morreu depois de quinze dias.
Vieira e Dona Maricota imaginavam — era natural —
que ambos e o pimpolho seriam os únicos herdeiros, já que o velho não tinha
família. Enganaram-se. O testamento, o único que apareceu entre os papéis do
velho, e que foi divulgado depois do enterro, só contemplava no benefício o
afilhado, com dez contos de réis. O resto era dividido entre hospitais e
asilos. Nem o próprio Vieira tinha um único centavo no testamento.
— Estranho! — bramiu Dona Maricota. — Nunca
imaginei que aquele homem não nos deixasse ricos. Por que nos dizia então que
éramos os únicos membros de sua família? Que mal empregados os oitenta mil réis
da coroa que lhe mandamos!
— Tenho intenção de não aceitar os dez contos que deixou ao nosso filho — confessou Vieira —. Dez contos! Que miséria!
— Seria melhor não haver deixado nada! Nosso filho não precisa de esmolas!
— Tenho intenção de não aceitar os dez contos que deixou ao nosso filho — confessou Vieira —. Dez contos! Que miséria!
— Seria melhor não haver deixado nada! Nosso filho não precisa de esmolas!
— Tenho até vontade de destruir o retrato — disse
indignado o marido.
— Não! Não vale a pena. Esse retrato pode ser
comprado por alguma das instituições que herdarão o dinheiro desse velho
tacanho.
Lançou um olhar severo sobre o retrato do
Comendador, que sorria compassivamente, enquanto exclamava decepcionada:
— Este mundo está cheio de ingratos!...
— Este mundo está cheio de ingratos!...
(Artur Azevedo, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona)
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