sexta-feira, 9 de novembro de 2012

CONTO = Artur Azevedo


ARTUR DE AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  =  1855 – 1908
 

 Dona Eulália

  

Quando cheguei, a casa mortuária estava cheia de gente. 

No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro enormes tochas acesas, e sobre a essa um caixão, dentro do qual D. Eulália dormia o último sono. 

Já tinha passado a hora do saimento. 

Faltava apenas o padre. 

O padre não aparecia. 

O viúvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um parente, que pelos modos tinha se encarregado do enterro: 

- Então?.. . esse padre?.. 

- Já cá devia estar. O Tio Eusébio quer que eu vá buscá-lo? 

- É favor, Casuza. 

E o parente saiu muito apressado. 

Dez minutos depois, o Ensébio aproximou-se de mim e disse-me baixinho: 

- E nada de padre! Estava escrito que este dia não passava para mim sem alguma contrariedade!...

***

Justifiquemos esse grito do coração. 

O Eusébio não foi um marido feliz. D. Eulália, que tinha muito mau gênio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno. 

O pobre homem não tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido como um fâmulo quando entrava mais tarde; devia dar contas de um níquel, de um miserável níquel que lhe desaparecesse do bolso! 

Apesar de casado havia já quinze anos, ele não se pudera habituar a essa existência ridícula, e sentia-se envelhecer prematuramente na alma e no corpo. 

Não tinha filhos, - e era melhor assim, porque com certeza, D. Eulália não lhos perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza, e fecundá-lo-ia, para humilhá-lo ainda mais!

***

 Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusébio tentou reagir contra o mau gênio de D. Eulália; num dia, porém, que lhe falou mais alto e lhe bateu o pé, recebeu em troca uma tremenda bofetada, cujo estalo ressoou em todo o quarteirão. Durante quinze dias a vizinhança não se ocupou de outra coisa. 

O marido que apanha da cara metade está perdido; o que apanha e chora, está irremissivelmente perdido. O Eusébio apanhou e chorou... 

Daquele dia em diante foi-se-lhe toda a autoridade marital: tornou-se em casa um manequim, um pax vobis, um joão-ninguém. 

Era, entretanto, um homem simpático, virtuoso, apreciadíssimo por numerosos amigos e muito conceituado na repartição de onde tirava o necessário para que nada faltasse a D. Eulália.

 ***

De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusébio, nenhuma o ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miúdo, porque, graças ao mau gênio da dona da casa, a cozinha estava constantemente abandonada. 

Como as impertinências de D. Eulália já tinham fama no bairro, e nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusébio era obrigado a procurar cozinheira muito longe de casa. 

O que ele queria era alugá-la, mas bem sabia que, na venda, a recém-chegada seria logo posta ao corrente de tais impertinências.

 

*** 

Um dia o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela mulher. 

- Levante-se, tome banho, vista-se e vá procurar uma cozinheira! 

- Quê!... pois a Maria...? 

- Acabo de pô-la no olho da rua! 

- Por quê? 

- Não é da sua conta! Mexa-se!... 

- Uma cozinheira que não estava em casa há oito dias!... 

- Basta de observações! Quem manda aqui sou eu! Vamos! Vista-se! E nada de agências, hein? Olhe que se me traz cozinheira de agência, não passa da porta da rua! 

*** 

Nesse dia o Eusébio teria purgado todos os seus pecados, se os tivera, e se D. Eulália não fosse já um purgatório bastante. 

O pobre-diabo, que morava no Rio Comprido, foi, levado por informações, procurar uma cozinheira em São Francisco Xavier. Já estava alugada; entretanto, lá lhe disseram que no Morro do Pinto havia outra, muito boa, que lhe devia servir. 

O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem e subiu o Morro do Pinto. 

A cozinheira não estava em casa; tinha ido passar uns dias com uma parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho aconselhou o Eusébio a que não adiasse a diligência; a mulher trabalhava primorosamente em forno e fogão, era morigerada e estava morta por achar emprego. 

Abalou o Eusébio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a mulher na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta já para sair. Por pouco mais, a viagem teria sido baldada. 

Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpático e humilde, que à primeira vista inspirava certa confiança. 

Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusébio, a julgar pela prontidão com que se ajustaram. 

- Bem, amanhã lá estarei, meu patrão. 

- Amanhã, não: há de ser hoje, porque se entro em casa sem cozinheira, minha mulher... 

O Eusébio interrompeu-se - ia deitando tudo a perder, e emendou: - ... minha mulher, que é muito boa senhora, mas nem sempre acredita no que eu digo, há de supor que me remanchei. 

- Nesse caso, meu patrão, é preciso que eu vá primeiramente ao Morro do Pinto. 

- Pois vamos ao Morro do Pinto... - respondeu resignado o resignado Eusébio. 

*** 

Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadíssimo, doente, sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata. 

D. Eulália recebeu-o com duas pedras na mão: 

- Onde esteve o senhor metido até estas horas? Oh! que coisa ruim... que homem insuportável... Só a minha paciência!... 

- A senhora não calcula como me custou encontrar esta mulher, mas, enfim... parece que desta vez ficamos bem servidos. 

- Pois sim - resmungou D. Eulália, - vão ver que é alguma vagabunda! 

E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual arrogância: 

- Chegue-se mais! Não gosto de gritar e quero que me ouçam! 

A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna. 

- Como se chama? - perguntou D. Eulália.  

- Eulália. 

- Eulália?! 

- Eulália, sim, senhora! 

- Eulália?! Rua! Rua! 

E voltando-se para o marido: 

- Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma cozinheira com o mesmo nome que eu? Que desaforo!... 

- Mas, senhora. 

- Cale-se! Não seja burro! 

*** 

Creio que o Eusébio está justificado: como você vê, a morte de D. Eulália não poderia contrariá-lo.

 

("Contos Fora da Moda")

 

 

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