MÁRIO SETTE
RECIFE-PE = 1886-1950
A Ceia
Em menos de meio século os costumes domésticos mudaram até nas horas de refeições.
Almoçava-se, em regra, entre às 8 e as 9 horas; jantava-se das 3 às 5 da tarde e antes de ir dormir ceava-se às 8 ou às 9 da noite. Isto, nas duas primeiras décadas da centúria em curso.
Porque, do que se conhece de anteriormente tem-se um horário menos avançado: o jantar, por exemplo, serviam-no pouco depois de meio dia e a ceia, de garfo, com frigideiras, caranguejos e pirão, talvez até feijoada, era às ave-marias. O almoço seria logo ao sair da cama. Simples questão de trocar os nomes dos repastos.
A ceia, em nosso tempo, constituía-se de chá, pão ou bolachas, e, às vezes, uma macaxeira ou uma tapioca. Preponderava o chá e o pão. Ninguém iria para a cama sem encher o estômago com eles. Teria sonhos maus e pesadelos. O almoço era mais frugal do que o jantar, ao contrário de hoje. Naquele, havia, no fim, também chá com pão. No jantar, tinha-se como prato obrigatório o cozido com verduras ao invés do feijão, atualmente habitual do almoço, à moda carioca. Já íamos perdendo nossas características para adotar as estranhas, mesmo em comidas. A sopa, preferiam-na uns ao almoço e outros ao jantar: sem esquecer os que não a dispensavam em ambos. Não rareavam os que a saboreavam no fim da refeição, já fria.
Mas, a ceia, hoje abolida, revestia-se de um caráter muito solene porque reunisse a família toda antes da benção dos mais velhos para o repouso da noite. Ai dos filhos que faltassem a essa reunião!... O "velho" franzia as sobrancelhas, a mamãe rezava, as manas ficavam assustadas com o que se iria passar... O vadio!, peralta!, perdido! já saíam da boca do chefe da grei, enquanto a esposa amenizava essas expressões com uns "talvez perdesse o trem" ou "Demorou-se em casa de Sinhá"... Afinal, rompia pela porta a dentro, desconfiado e tímido, o retardatário. Desculpava-se... Fora uma negaça do relógio a se atrasar... Ou a maxambomba passando além da hora... O pai não aceitava muito a explicação, mas por esta vez... Se tal se repetisse, ficaria sem ceia e durante um mês "não me bota os pés na rua, à noite!" Um mês sem quebrar as calçadas da Rua da Conceição... Precisava não facilitar mais... Que diria "ela"?
A esses moços de prazo certo para voltar aos lares chamavam de "cabeças-secas" em alusão aos escravos que outrora só ficavam na rua depois das 9 horas com "bilhete do seu senhor". Senão, cadeia e bolos.... Os tempos da ceia eram duros para a mocidade, mas... todos tomavam chá e sabiam os seus efeitos no comportamento externo. E, se havia, uns poucos, avessos ao chá... As crônicas do tempo que contém dos corretivos alheios.
A ceia constituía-se não menos de uma meia hora ou mais de boa palestra íntima. Por vezes, as visitas de parentes participavam da refeição:- Fiquem para a ceia.
Ficavam. Fazia-se uma espécie de balanço do dia. Cada um comentava o que lhe acontecera no trato comum de negócios ou da família. Soubera-se de uma novidade na vizinhança; um noivado rompido; uma doença de comadre; uma companhia para o teatro; uma "partida" em casa de amiga; um projeto de passar a Festa fora... E ia-se assim tesourando ou combinando, enquanto se servia o Lipton preto ou verde, as bolachinhas Polaca, quando não fosse aquele pão de dois tostões que dava para todos os da casa...
Não faltava ninguém. Trancava-se a porta da rua com seus grossos ferrolhos. Iam-se apagando os bicos de gás. O quarto do oratório congregava ainda os que iam rezar. E, por fim: - A bênção, minha mãe!
- Deus te faça feliz.
Terminada a ceia: dormir. O relógio de pêndulo dava vagaroso 10 horas.
Xi! Com a conversa, hoje, vamos dormir quase de madrugada!...
(SETTE, Mauro. Maxambombas e maracatus)
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