sábado, 6 de outubro de 2012

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-MG = 1902-1987


O Dono




O dono do pequeno restaurante é amável, sem derrame, e a fregueses mais antigos costuma oferecer, antes do menu, o jornal do dia "facilitado", isto é, com traços vermelhos cercando as notícias importantes. Vez por outra, indaga se a comida está boa, oferece cigarrinho, queixa-se do resfriado crônico e pergunta pelo nosso, se o temos; se não temos, por aquele regime começado em janeiro, e de que desistimos. Também pelos filmes de espionagem, que mexem com ele na alma.

Espetar a despesa não tem problema, em dia de barra pesada. Chega a descontar o cheque a ser recebido no mês que vem ("Falta só uma semana, Seu Adelino").

Além dessas delícias raras, Seu Adelino faculta ao cliente dar palpites ao cozinheiro e beneficiar-se com o filé mais fresquinho, o palmito de primeira, a batata feita na hora, especialmente para os eleitos. Enfim, autêntico papo-firme.

Uma noite dessas, o movimento era pequeno. Seu Adelino veio sentar-se ao lado da antiga freguesa. Era hora do jantar dele, também. O garçom estendeu-lhe o menu e esperou. Seu Adelino, calado, olhava para a lista inexpressiva dos pratos do dia. A inspiração não vinha. O garçom já tinha ido e voltado duas vezes, e nada. A freguesa resolveu colaborar:

- Que tal um fígado acebolado?

- Acabou, madame - atalhou o garçom.

- Deixe ver... Assada com coradas, está bem?

- Não, não tenho vontade disso - e Seu Adelino sacudiu a cabeça.

- Bem, estou vendo aqui umas costeletas de porca com feijão branco, farofa e arroz...

- Não é mau, mas acontece que ainda ontem comi uma carnezita de porco, e há dois dias que me servem feijão ao almoço - ponderou.

A freguesa de boa vontade virou-se para o garçom:

- Aqui no menu não tem, mas quem sabe se há. Um bacalhau à qualquer coisa? - pois Seu Adelino (refletiu ela) é português, e como todo lusíada que se preza, há de achar isso a pedida.

Da cozinha veio a informação:

- Tem bacalhau à Gomes de Sá. Quer?

- É, pode ser isso - concordou Seu Adelino, sem entusiasmo.

Ao cabo de dez minutos, veio o garçom brandindo a Gomes de Sá. A freguesa olhou o prato invejando-o, e, para estimular o apetite de Seu Adelino:

- Está uma beleza!

- Não acho muito não - retorquiu, inapetente.

O prato foi servido, o azeite adicionado, e Seu Adelino traçou o bacalhau, depois de lhe ser desejado bom apetite. Em silêncio.

Vendo que ele não se manifestava, sua leal conviva interpelou-o:

- Como é, está bom?

Com um risinho meio de banda, fez a crítica:

- Bom nada, madame. Isso não é bacalhau à Gomes de Sá nem aqui nem em Macau. É bacalhau com batatas. E vou lhe dizer: está mais para sem gosto do que com ele. A batata me sabe a insossa, e o bacalhau salgado em demasia, ai!

A cliente se lembrou, com saudade vera, daquele maravilhoso Gomes de Sá que se come em casa de Dona Concessa. E foi detalhando:

- Lá em casa é que se prepara um legal, sabe? Muito tomate, pimentão, azeite de verdade, para fazer um molho pra lá de bom, e ainda acrescentam um ovo...

Seu Adelino emergiu da apatia, comoveu-se, os olhos brilhando desta vez em sorriso aberto:

- Isso mesmo! Ovo cozido e ralado, azeitonas portuguesas, daquelas... Um santo, santíssimo prato! Mas, encarando o concreto:

- Essa gente aqui não tem a ciência, não tem a ciência!

- Espera aí, Seu Adelino, vamos ver no jornal se tem um bom filme de espionagem para o senhor se consolar.

Não tinha, infelizmente.



(“Caminhos de João Brandão”)





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