sábado, 29 de setembro de 2012

CRÔNICA = Mário Sette

MÁRIO SETTE
RECIFE-PE = 1886-1950




As Barcaças De Capim





Era na época mais agitada da abolição da escravatura.

Todos os brasileiros, e os pernambucanos por excelência, se envergonhavam da existência do cativeiro em seu país, procurando cada um prestar seus esforços em favor da grande obra de libertação desses pobres negros, tão dóceis, tão laboriosos, tão bons!

Uns abolicionistas faziam discursos na praça pública, outros escreviam nos jornais, muitos davam dinheiro para ajudar na alforria de alguns escravos ou facilitavam a fuga de outros.

Os que fugiam, em regra, embarcavam às escondidas para o Ceará, que foi a primeira província do Brasil a dar liberdade aos escravos.

E a bela cruzada tomava quase um aspecto de religião. Somente os interessados defendiam a escravidão.

No Recife, entre tantas outras, havia um par de almas generosas e estóicas, devotado ao extremo a essa humana causa; era o doutor José Mariano, político muito querido do povo, e sua esposa dona Olegarinha.

Residiam em um sobrado no Poço da Panela, à margem do Capibaribe, e, ali, se refugiavam os escravos evadidos dos engenhos, das fazendas, dos sítios, certos de encontrar segurança, amparo e carinho.

Quase não havia noite em que, sorrateiramente, um pobre cativo não chegasse ao Poço da Panela, por vezes maltratado, o corpo sangrando de castigos, as mãos inchadas de bolos, os dentes arrancados à força; uma lástima, uma tristeza!

Dona Olegarinha, ela própria, tratava os ferimentos, consolava os infortunados, dava-lhes alimentos e vestuários.

José Mariano, por seu lado, andava pregando nas ruas em favor da abolição e a palavra vibrante ia fazendo adeptos.

Por fim, estando o palacete do Poço da Panela muito cheio de refugiados, José Mariano e sua esposa resolveram embarcar alguns dos seus protegidos para o Ceará.

Todavia, mostrava-se bastante arriscada essa viagem. A polícia, a mando do governo, vivia na beira do cais, espreitando as embarcações, no intuito de aprisionar os escravos que fugissem, missão essa que o exército recusara quando o quiseram disso encarregar.

José Mariano, porém, era astucioso. Conseguiu a colaboração dos barcaceiros, e, assim, as barcaças subiam o Capibaribe até o Poço, a pretexto de carregar capim. Ali, à noitinha, os escravos entravam nas embarcações, escondiam-se nos porões, e por cima deles estendiam os feixes de capim.

De madrugada as barcaças desciam o rio. Passavam diante dos soldados, sem causar desconfianças, serenamente.

E mal dobravam a boca da barra abrindo todas as suas velas brancas, cortando airosamente o mar, lá se iam para longe.


(Sette, Mário. Terra pernambucana)

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