sábado, 11 de agosto de 2012

POESIA = Fernando Pessoa


FERNANDO PESSOA
LISBOA  =  1888 / 1935


  A Criança Que Fui Chora Na Estrada


I
 A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

II
 Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem 
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo. 

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me, 


E, inúmero, prolixo, vou descendo 
Até passar por todos e perder-me. 


III 

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço 

O que sinto que sou? Quem quero ser 
Mora, distante, onde meu ser esqueço, 
Parte, remoto, para me não ter.




Nenhum comentário: