LOURENÇO
DIAFÉRIA
SÃO PAULO-SP
= 1933
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Bilhete Para Um Operário
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Pegaram um dia um operário e
disseram-lhe: Senta-te no banco dos réus.
És acusado de haveres nascido
com sonhos na cabeça. És acusado de teres os cabelos encaracolados. És
acusado de teres bigodes vastas, negros, provocativos.
És acusado de teres alguns
pedaços de dedos a menos que o comum dos mortais, podados pelas engrenagens
das máquinas.
És acusado de ficares pelas
esquinas conversando em voz baixa com amigos enquanto a luz dos postes te
ilumina o suor do rosto. És acusado de terem te visto no bar dando
gargalhadas.
És acusado de tua casa ter um
pequeno jardim com grama e flores.
És acusado de conheceres
a sinfonia das sirenas das fábricas anunciando a aurora do primeiro turno. És
acusado de seres reconhecido na portaria e todos te cumprimentarem, e te
baterem levemente nas costas com alegria, e te dizerem: olá, meu chapa.
És acusado de inventares um
partido que não é o único, mas não se confunde com siglas e teorias de
alfarrábios envelhecidos.
És acusado de fazeres discursos
de improviso com vigor e gana que nascem do fundo das vísceras do
espírito.
És acusado de não seres magro
nem raquítico como teus irmãos deviam ser.
És acusado de jogares baralho e
dares dores de cabeça aos homens sérios deste país. És acusado de usares
gravata em vez de macacão, vestindo-te com roupas só permissíveis no enterro
do melhor amigo. És acusado de freqüentares reuniões e discutires com sábios
e iluminados sem pedir licença nem apresentar diploma. És acusado de te
haverem visto com ministros, criaturas importantes, e não te ocorrer
submeter-se a elas.
És acusado de não teres
te colocado no lugar cavado para o oprimido. És acusado de haveres gritado
com toda a força de teus pulmões fuliginosos.
És acusado de teres filhos
bonitos e uma mulher doce, que devia ser feia e talhada a foice.
És acusado de não seres rapaz
comportado, meigo, gentil, acetinado.
És acusado de conheceres a
prensa, e não te afugentar o ronco que ela faz na madrugada.
És acusado de quereres a pátria
livre, e livre, também, o coração e os sentimentos do homem.
És acusado de rezares e de pôr
a boca no trombone quando todos se calam e descrêem de Deus e
dos homens.
És acusado de teres o desplante
de ser líder num país desnaturado onde quem levanta a fronte é
triturado.
És acusado de haveres perdido a
paciência de esperar pelo futuro que não chega nunca.
És acusado de usares
sapatos 42, de couro, quando o normal é sandália havaiana.
És acusado de romperes
as cadeias invisíveis que amarram teus braços peludos e tuas mãos
penadas.
És acusado de atraíres os
operários com tua voz, teu berro, teu silêncio, teu olhar, tua dor, tua
ânsia, teu mistério, e saberes contar, sorrindo, tristes histórias recolhidas
em barracos e cômodos-e-cozinhas.
És acusado de estares em
pé, quando devias estar de bruços, de borco, exangue e vencido.
És acusado de não seres o que
queriam que tu fosses.
Meu caro operário sentado no
banco dos réus, por favor, recebe este recado:
Se existir mesmo essa senhora
difusa e vaga a que chamam de Justiça, confia nela.
Não creio que essa matrona seja
cega.
Segundo
Diaféria, "esta crônica foi escrita, e publicada no jornal Folha de
S. Paulo, quando o Lula (ainda
apelido) era o líder metalúrgico que acabara de ser
preso, acusado de violar a Lei de Segurança Nacional."
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sábado, 4 de agosto de 2012
CRÔNICA = Lourenço Diaféria
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