EUSTÓRGIO WANDERLEY
RECIFE-PE
= 1882-1962
Padre Machado
Não há muitos anos havia no Recife uma figura
inconfundível de sacerdote que se tornou popularíssima: era a do padre Machado.
Aliás, padre Manuel Machado. Poucas pessoas, entretanto, lhe sabiam o nome de
batismo. Era conhecido apenas pelo nome de família. E ele costumava dizer, com
o largo sorriso que lhe entreabria sempre os lábios grossos da boca franca das
pessoas generosas e joviais:
- Eu sou um machado que não corta lenha.
Salvo se for para botar no fogão dos pobres que não tenham com que ferver a
água para o seu ralo cafezinho...
E assim era. Nesses momentos ele seria até capaz de
se transformar de machado em lenha contanto que socorresse a um pobre.
JAMAIS TEVE DINHEIRO SEU
Sem ser franciscano, parece haver feito o voto de
absoluta pobreza, nada tendo de seu, ou antes: o que tinha - o que lhe davam -
pertencia aos necessitados. Por mais de uma vez, recebendo em envelope fechado
a espórtula da missa que havia celebrado, a entregava toda, sem mesmo averiguar
quanto continha - ao primeiro pobre que lhe pedisse uma esmola!
Os motoristas dos automóveis, que o conheciam e o
estimavam, não lhe cobravam as viagens e, ao contrário, quando o encontravam a
pé pelas ruas - sobraçando pesados embrulhos de mantimentos, de roupas usadas
que ele pedia para distribuir aos pobres - o convidavam para tomar lugar nos
seus carros. Igualmente os condutores dos bondes não lhe cobravam a passagem.
Quando algum, não o conhecendo ainda, fazia a cobrança, o padre Machado depois
de procurar em vão, nos bolsos da velha batina, dizia, sinceramente surpreso:
- E, não é que me esqueci do dinheiro?!... Vou
descer do bonde...
E o condutor não consentia que ele descesse. Mesmo
algum passageiro - e, às vezes, até mais de um - fazia questão de pagar a
passagem do querido padre Machado, sempre despreocupado de si mesmo, tão grande
era sua preocupação com a sorte dos infelizes.
Prevendo esses esquecimentos do filho, sua
veneranda genitora lhe punha sempre no bolso alguns níqueis. Acontece, porém,
que ele, chegando à rua e ouvindo o tilintar das moedas, as entregava aos
primeiros pedintes que lhe estendessem a mão...
LEVANDO A EXTREMA-UNÇÃO
Certa vez, alta noite, um grupo de rapazes boêmios
o viu entrar em um sobrado... suspeito, na rua da Moeda. Esperaram que ele
saísse para o pilheriarem.
E assim o fizeram. Padre Machado os ouviu em
silêncio.
Chegando mais adiante, encontrou um guarda-noturno
e pediu:
- Senhor guarda: Faça-me o obséquio de me
acompanhar e mais alguns moços a um sobrado ali adiante...
O guarda o acompanhou. O grupo dos boêmios ainda
ali estava, comentando, desprimorosa e maliciosamente, a entrada do reverendo
naquele sobrado de má fama...
Aproximando-se do grupo lhe diz o padre:
- Quero pedir aos meus jovens amigos o favor de me
acompanharem até lá em cima.
Os rapazes o acompanharam. Lá em cima depararam com
uma pobre mulher morta, enquanto suas companheiras, ajoelhadas em volta
do leito mortuário, rezavam, chorando... Apontando aquela cena pungente
explicou o virtuoso padre:
- Vêem os nobres amigos? Vim aqui trazer Jesus
Cristo, na extrema-unção, àquela pobre pecadora que acaba de falecer.
Os jovens boêmios não riram mais do padre Machado
e, arrependidos do mau juízo que haviam feito, lhe pediram, humildemente,
perdão.
(Wanderley, Eustórgio. Tipos populares do Recife antigo. 1ª e 2ª série, 2ª ed. Recife, Colégio Moderno, 1953-1954)
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