sábado, 23 de junho de 2012

CONTO

ARTHUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908

O Velho Lima


O velho Lima, que era empregado ¬ antigo ¬ numa das nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil. O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias. O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República. No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras: ¬ Bom-dia, cidadão. O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder!¬ Bom-dia, comendador. ¬ Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores! ¬ Ora essa! Então por quê? ¬ A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!... O velho Lima encarou o comendador, e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria. Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro: Como vai você com o Aristides?¬ Que Aristides?¬ O Silveira Lobo.¬ Eu!... onde?... como?... Que diabo! pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior?... Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.¬ Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? perguntou Vidal, passados alguns momentos. Sonetos, naturalmente, que é do que mais se ocupa aquele tipo!¬ Ora vejam, refletiu o velho Lima, ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador! Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador. Uma autoridade policial! murmurou o velho Lima. E o comendador acrescentou:¬ Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês. O velho Lima comovia-se: Não diz coisa com coisa, coitado! ¬ E a bandeira? Que me diz você da bandeira? ¬ Ah, sim... a bandeira... sim... repetiu o velho Lima para o não contrariar.¬ Como a prefere: com ou sem lema?¬ Sem lema, respondeu o bom homem num tom de profundo pesar; sem lema.¬ Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro. Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado, e disse-lhe:¬ Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço da Pedro II!¬ Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço da Pedro II!¬ Qual Pedro II! bradou o comendador. Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos!¬ E vá para a casa do diabo! acrescentou o subdelegado. O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se. Chegado à praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até à sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara. Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação... Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe: Cidadão! Deram hoje para me chamar cidadão! pensou o velho Lima. Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data .¬ Oh! você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado! O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente.¬ Querem ver que já é alguém! refletiu o velho Lima.¬ Amanhã parto para a Paraíba, disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos; como sabe, vou exercer o cargo de chefe de polícia. Lá estou ao seu dispor. E desceu. Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo! Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros. Muito bem! disse consigo; foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa. Sentou-se, e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe:¬ Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade? O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso:¬ Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana? ¬ Pedro Banana! repetiu raivoso o velho Lima. E, sentando-se, pensou com tristeza:¬ Não dou três anos para que isto seja república!

Contos fora da moda, de Arthur Azevedo. Editora Alhambra, 122 pp.



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