domingo, 20 de maio de 2012

ARTIGO


ASCENÇO FERREIRA (*)

Sérgio Milliet


Certa vez, no Clube dos Artistas, o garçom me comunicou que o Ascencinho queria falar-me e andara me procurando. Na hora, com esse diminutivo, não percebi de quem se tratava. Soube-o mais tarde; era o Ascenço Ferreira, dois metros de altura, cem quilos de peso, alma de criança. Bem merecedor do apelido, pela sua bondade e a sua lhaneza.
Em 1922, descobrimos esse poeta de Pernambuco, esse poeta do povo, que revivia em seus poemas o folclore do Nordeste. Mas ele não topou os modernistas e foi preciso a catequese de Guilherme de Almeida para que o Ascencinho aderisse ao movimento. Agora é dos nossos, e esteve há dias em São Paulo, vindo do Rio de Janeiro de automóvel, pela esburacada rodovia de que andamos tão orgulhosos durante três meses. Trouxe uma edição de luxo de suas obras, um lindíssimo volume ilustrado por Cícero Dias, Lula e Luiz Jardim e com os dois discos para nosso conhecimento de sua voz baixa e rouca. Ótima idéia, porque a poesia de Ascenço precisa ser ouvida e ouvida da boca do próprio autor. Lida por nós paulistas perde o sabor do sotaque, da fala cantante tão gostosa dos cabeças chatas.
O caboclo velho, que foi da roda de Gilberto Freyre, Cícero Dias, José Lins do Rego e tantos outros heróis de muito caráter que Pernambuco nos enviou, aqui esteve, por aqui passou para dar um abraço nos amigos. Chegou recitando novos poemas, os do livroXenhenhen. Mas recitar não é bem o verbo certo, pois que não os recita. Como observa Manuel Bandeira no prefácio dessa edição de luxo, reza-os, cospe-os, dança-os e os arrota. É ainda de Bandeira este comentário: “ler, e sobretudo ouvir Ascenço, é viver intensamente no mundo dos mangues de Recife, do massapê e das caatingas, mundo do bambo-do-bambu-bambeiro, das cavalhadas, dos pastoris, dos reisados, dos bumbas, dos maracatus, das vaquejadas”, o que equivale dizer que é conviver com o povo nordestino no que ele tem de mais original, de mais genuinamente mestiço, fruto autêntico das famosas três raças de Martius.
O livro aí está, precioso, raro, e nós o devemos à iniciativa de Manuel de Souza Barros, criador do Departamento de Cultura de Recife, a quem devem ser creditadas igualmente a Revista do Arquivo de Pernambuco, a Escola de Biblioteconomia e as bibliotecas populares de bairro, coisa que só agora se vai realizar em São Paulo.
Em Catimbó, livro de Ascenço, assim está escrito:

“Mestre Carlos, rei dos mestres
aprendeu sem se ensinar…
— Ele reina no fogo!
— Ele reina na água!
— Ele reina no ar!

Pois mestre Ascenço reina no Nordeste e já vai tomando conta do Brasil inteiro, com sua simpatia, com sua bondade, com a poesia pura de sua linguagem tão comoventemente nossa.


Milliet, Sérgio. “Ascenço Ferreira”. Folha de Minas. Belo Horizonte, 19 de julho de 1951


(*) = ASCENSO FERREIRA

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