ASCENÇO FERREIRA (*)
Sérgio Milliet
Certa
vez, no Clube dos Artistas, o garçom me comunicou que o Ascencinho queria
falar-me e andara me procurando. Na hora, com esse diminutivo, não percebi de
quem se tratava. Soube-o mais tarde; era o Ascenço Ferreira, dois metros de
altura, cem quilos de peso, alma de criança. Bem merecedor do apelido, pela sua
bondade e a sua lhaneza.
Em
1922, descobrimos esse poeta de Pernambuco, esse poeta do povo, que revivia em
seus poemas o folclore do Nordeste. Mas ele não topou os modernistas e foi
preciso a catequese de Guilherme de Almeida para que o Ascencinho aderisse ao
movimento. Agora é dos nossos, e esteve há dias em São Paulo, vindo do Rio de
Janeiro de automóvel, pela esburacada rodovia de que andamos tão orgulhosos durante
três meses. Trouxe uma edição de luxo de suas obras, um lindíssimo volume
ilustrado por Cícero Dias, Lula e Luiz Jardim e com os dois discos para nosso
conhecimento de sua voz baixa e rouca. Ótima idéia, porque a poesia de Ascenço
precisa ser ouvida e ouvida da boca do próprio autor. Lida por nós paulistas
perde o sabor do sotaque, da fala cantante tão gostosa dos cabeças chatas.
O
caboclo velho, que foi da roda de Gilberto Freyre, Cícero Dias, José Lins do
Rego e tantos outros heróis de muito caráter que Pernambuco nos enviou, aqui
esteve, por aqui passou para dar um abraço nos amigos. Chegou recitando novos
poemas, os do livroXenhenhen. Mas recitar não é bem o verbo certo, pois que não
os recita. Como observa Manuel Bandeira no prefácio dessa edição de luxo,
reza-os, cospe-os, dança-os e os arrota. É ainda de Bandeira este comentário:
“ler, e sobretudo ouvir Ascenço, é viver intensamente no mundo dos mangues de
Recife, do massapê e das caatingas, mundo do bambo-do-bambu-bambeiro, das
cavalhadas, dos pastoris, dos reisados, dos bumbas, dos maracatus, das
vaquejadas”, o que equivale dizer que é conviver com o povo nordestino no que
ele tem de mais original, de mais genuinamente mestiço, fruto autêntico das
famosas três raças de Martius.
O
livro aí está, precioso, raro, e nós o devemos à iniciativa de Manuel de Souza
Barros, criador do Departamento de Cultura de Recife, a quem devem ser
creditadas igualmente a Revista do Arquivo de Pernambuco, a Escola de
Biblioteconomia e as bibliotecas populares de bairro, coisa que só agora se vai
realizar em São Paulo.
Em Catimbó,
livro de Ascenço, assim está escrito:
“Mestre Carlos, rei dos mestres
aprendeu sem se ensinar…
— Ele reina no fogo!
— Ele reina na água!
— Ele reina no ar!
aprendeu sem se ensinar…
— Ele reina no fogo!
— Ele reina na água!
— Ele reina no ar!
Pois
mestre Ascenço reina no Nordeste e já vai tomando conta do Brasil inteiro, com
sua simpatia, com sua bondade, com a poesia pura de sua linguagem tão
comoventemente nossa.
Milliet, Sérgio. “Ascenço Ferreira”. Folha de
Minas. Belo Horizonte, 19 de julho de 1951
(*) = ASCENSO FERREIRA
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