domingo, 15 de fevereiro de 2015

VÍDEO = Carnavais do Recife e Olinda


POESIA = Manuel Bandeira



Bacanal

Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada.
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
- Vinhos!... o vinho que é meu fracco!...
Evoé Baco!

O alfanje rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!...
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé Vênus!

MANUEL BANDEIRA
RECIFE-PE  =  1886-1968

CRÔNICA = Sérgio Rodrigues






Todo cuidado é pouco com essa máscara, viu, Vi? Não, sua boba, empresto com prazer porque você sabe que é a minha neta preferida, e além disso tem outras coisas, sinto um arrepio só de imaginar que a minha máscara negra veneziana nariguda vai se soltar por essas ruas outra vez depois de meio século guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, devia andar triste, a coitadinha, olha só esses olhos vazados caídos, tão merencórios. Ah, esses olhinhos viram coisa, Vi. Claro que não era como agora, era melhor, era pior. Diferente: eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha. Seu avô, sim, aquele se esbodegava inteiro, saía no sábado pra voltar na quarta-feira que nem na música da camisa listrada, só que a fantasia dele, infalível, era de arlequim – conhece a música da camisa listrada? Ainda toca isso? Em vez de tomar chá com torrada ele tomou parati, não, imagine se vai tocar. Agora é diferente, pior, melhor, depende. Por exemplo, quando você casar, duvido que agüente o que eu agüentei. Não agüenta, Vi, mudou demais. Para melhor, nesse ponto eu acho que foi para muito melhor, porque se o seu marido um dia sair por aí com um canivete no cinto e um pandeiro na mão, sossega leão e tal, eu acho que você pode até aceitar, mas conhecendo você como eu conheço, eu sei que mal a porta bateu você vai sair também, você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira, lalaiá, lalaiá. Sossega leoa – vai ou não vai? Pois eu acho que está certíssimo, querida, nós é que éramos bobas no meu tempo, eu era. Engolia, agüentava, chorava no travesseiro, noite em cima de noite perdendo o viço. Uma mulher guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, cheiro de naftalina, ih, estou melosa, estou dramática, mas era assim. Não admira que os olhinhos fossem ficando merencórios, que o marido perdesse o interesse e procurasse cada vez mais passatempos, depois vinha cair na cama sem tirar nem o sapato. O seu avô, por exemplo: um homem bom, trabalhador, mas um patriarcão de antigamente, acho que um dos últimos. Pisada firme, vozeirão, chicote no cinto, chicote é maneira de dizer, que no Rio de 1950 ninguém usava chicote, mas você entende. Sua mãe não era nascida ainda, os outros quatro sim, aquela escadinha, e foi aí que ele me prometeu. O baile de máscaras do sábado de carnaval no casarão da Glorinha Pissaraçuba na Praia do Flamengo – não tinha programa mais cintilante, jóia social mais cobiçada naquele tempo. Era diferente demais, melhor, pior, eu não disse? Melhor, Vi, nesse caso era melhor porque nós íamos pela primeira vez no baile da Glorinha Pissaraçuba, ah, você tinha que ver a minha felicidade! A máscara veneziana eu comprei na Rua do Ouvidor para a ocasião, não foi barata, negra porque assim ficava mais discreto, mais digno, seu avô aconselhou. Aconselhou? Essa é boa, aconselhou nada, mandou, pois é. O vestido ia ser um verde brilhoso de festa que já começava a encardir no armário, mandei tirar, lavar, quarar, engomar, chegou o dia e eu fui fazer o cabelo, as crianças excitadas só de ver a minha felicidade, mamãe vai sambar, vai sambar, sambar, e quando chegou a hora, Vi – sambei, justamente. Seu avô ligou da rua dizendo que a gente não ia mais no baile de máscaras, imprevistos, ele falou, contratempos, uma palavra assim. Eu sabia o tipo de contratempo que ele gostava, aquele que o cabelo não nega mas em compensação a cor não pega, feito dizia o Lamartine. Seu avô não era fácil e a gente era boba demais, triste e amargurada, não tinha essa sabedoria das mulheres de hoje, não tinha o salve o prazer, salve o prazer. Me tranquei no quarto aquele sábado, os olhinhos merencórios dessa máscara negra aí, essa mesma, ficaram me olhando em cima da cama um tempão. Foi a Conceição que pôs as crianças para dormir, apagou a casa toda, você não teve tempo de conhecer a Conceição, até hoje eu sinto saudade. Ela cuidou de tudo enquanto eu ficava sentada na cama de vestido verde e laquê armado ouvindo as risadas, gritinhos, gente batendo na lata, os barulhos todos de carnaval que você conhece, isso não mudou tanto, ainda é assim. Eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha, e quando cheguei na esquina de máscara e vestido verde e vi um grupo de clóvis me olhando do outro lado da rua, me veio um pânico doido, quase dei meia volta. Nem sei como continuei andando, marcando o passo com o meu coração, acho que eu corria. Não lembro de ter entrado no Cadillac que o pierrô de porre parou do meu lado, me deu um branco mas eu sabia que, tendo entrado ou não, a verdade era que eu estava dentro dele agora, sentada no banco do carona com a cabeça girando e a mão do pierrô no meu joelho enquanto a estradinha cheia de curvas passava por nós, o mar rugindo lá embaixo, reconheci a Niemeyer. Quem é você, diga logo que eu quero saber, ele me disse que se chamava Jorge, depois Álvaro, mais tarde Toninho, e com o céu começando a clarear já tinha virado Camilo, Ciro, Ismael. Eu também não pronunciei o nosso nome, Vi, e a máscara negra nariguda eu só tirei enquanto a escuridão nos protegia, o pierrô não soube que eu me chamava Elvira. Mas nunca vou esquecer os olhos verdes dele, aqueles não tinham nada de merencórios, eram da cor do mar de São Conrado quando amanhece num domingo de carnaval – idênticos aos que me olham agora da sua cara espantada, Vi, isso também não mudou, e no fim daquele ano sua mãe nasceu.

SÉRGIO RODRIGUES
MURIAÉ-MG = 1962

GRANDES PINTORES

 BAJADO = Maraial-Pe = 1912-1996
 BAJADO
 BAJADO
 BAJADO
 BAJADO-PE
 BAJADO
 BAJADO
 BAJADO
 BAJADO
BAJADO = Maraial-PE, 2912-1997

VÍDEO = Hino da Troça CEROULA


CARNAVAL DO RECIFE-PE = Galo da Madrugada








 








VÍDEO = Carnaval do Recife e Olinda


POESIA = Gouveia Marinho



Carnaval

Vai na rua o cortejo buliçoso...
Aos pinchos passa a multidão fremente.
Para o hospício dir-se-á segue essa gente,
De delírio possuída, ébria de gôzo.

Num culto primitivo e rumoroso,
Ao Deus Momo e ao Deus Baco, indiferente
Aos postulados da moral corrente,
Sacrifica no altar do vício ascoso.

Qual de um abismo a fauce escancarada,
A folia te atrai... E eis-te. Sumida
A austeridade na atra desfilada.

E nesse, em que mergulhas, mar de lôdo,
Deixas cair, folião, a fementida
Máscara que afivelas o ano todo...

 GOUVEIA MARINHO
LUIZ TAVARES DE GOUVEIA MARINHO
GOIANA  =  1901 / 1983

CRÔNICA = Clarice Lispector



Restos De Carnaval

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
CLARICE LISPECTOR
UCRÂNIA,1920 = BRASIL, 1977