sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018
CONTO = Artur Azevedo
Plebiscito
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
ARTHUR
AZEVEDO
SÃO
LIÍS-MA = 1855-1908
CONTO = Franz Kafka
O Exame
Sou um
criado, mas não há trabalho para mim. Sou medroso e não me ponho em evidência;
nem sequer me coloco em fila com os outros, mas isto é apenas uma das causas de
minha falta de ocupação; também é possível que minha falta de ocupação nada tenha
a ver com isso; o mais importante é, em todo caso, que não sou chamado a
prestar serviço; outros foram chamados e não fizeram mais gestões que eu; e
talvez nem mesmo tenham tido alguma vez o desejo de serem chamados, enquanto
que eu o senti, às vezes, muito intensamente.
Assim
permaneço, pois, no catre, no quarto de criados, o olhar fixo nas vigas do
teto, durmo, desperto e, em seguida, torno a adormecer. Às vezes cruzo até a
taverna onde servem cerveja azeda; algumas vezes por desfastio emborquei um copo,
mas depois volto a beber. Gosto de sentar-me ali por que, atrás da pequena
janela fechada e sem que ninguém me descubra, posso olhar as janelas de nossa
casa. Não se vê grande coisa; sobre a rua, dão, segundo creio, apenas as
janelas dos corredores, e além do mais, não daqueles que conduzem aos aposentos
dos senhores; é possível também que eu me engane; alguém o sustentou certa vez,
sem que eu lho perguntasse, e a impressão geral da fachada o confirma. Apenas
de vez em quando são abertas as janelas, e quando isso acontece, o faz um
criado, o qual, então, se inclina também sobre o parapeito para olhar para
baixo um instantinho. São, pois, corredores onde não se pode ser surpreendido.
Além do mais não conheço esses criados; os que são ocupados permanentemente na
parte de cima, dormem em outro lugar; não em meu quarto.
Uma vez,
ao chegar à hospedaria, um hóspede ocupava já o meu posto de observação; não me
atrevi a olhar diretamente para onde estava e quis voltar-me na porta para sair
em seguida. Mas o hóspede me chamou e, assim, então, percebi que era também um
criado ao qual eu tinha visto alguma vez e em alguma parte, embora sem ter
falado nunca com ele até aquele dia.
– Por que
queres fugir? Senta-te aqui e bebe. Eu pago.
Sentei-me,
pois. Perguntou-me algo, mas não pude responder-lhe; não compreendia sequer as
perguntas. Pelo menos eu disse:
– Talvez
agora te aborreça o fato de ter-me convidado. Vou-me, pois.
E quis
erguer-me. Mas ele estendeu a mão por cima da mesa e me manteve em meu lugar.
–
Fica-te!, disse. Isto era somente um exame. Aquele que não respondesse às
perguntas está aprovado no exame.
FRANZ KAFKA
Rep. Tcheca, 1883-1924
POESIA = Ascenso Ferreira
Maracatu
Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
— Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?
ASCENSO FERREIRA
PALMARES-PE = 1895-1965
PALMARES-PE = 1895-1965
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