domingo, 27 de agosto de 2017
CONTO = Humberto de Campos
O sapateiro
Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida,
dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos
a décima parte da população local, quando lhe apareceu na oficina, para
encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de
quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada,
residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou
no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com
uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava inteiramente
transfigurado de coração.
À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os
olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do
mistério da saia curta, de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma
rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se
preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos
os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.
Só depois de casado, porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço
verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser,
pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua
filha e, até - quem sabe? - sua neta. E era pensando nisso que a
mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata
uma criança.
Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O
Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para
companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto,
que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até,
dos negócios comerciais da sua oficina.
Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como
de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira
da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e
filha, com os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um
camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as
telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato,
Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e pediu, dengosa:
‒ Sabes, Manoel, que é que eu queria?
‒ Que é? ‒ indagou o esposo, divertindo-se com
aquela alegria.
‒ Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um
par de sapatos para mim!
O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e
retrucou, rindo:
‒ Que tolice, Clotilde! Tu não vês que o couro daquele
camundongo não dá para um par de sapatos?
A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça
no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:
‒ Dá, Manoel, dá!
E ao seu ouvido, com a voz trêmula:
‒ Olha, Manoel, o couro... espicha!
HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886-1934
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