domingo, 21 de fevereiro de 2016
POESIA = Manoel Bandeira
Contrição
Quero banhar-me nas águas
límpidas
Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
Me sinto sórdido
Confiei às feras as minhas
lágrimas
Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
Meu Deus valei-me
Vozes da infância contai a
história
Da vida boa que nunca veio
E eu caia ouvindo-a no calmo seio
Da eternidade
MANUEL BANDEIRA
RECIFE-PE = 1886-1968
CONTO = Lima Barreto
O Morcego
Correio da Noite, Rio,
2-1-1915
O carnaval é
a expressão da nossa alegria. O ruído, o barulho, o tantã espancam a tristeza
que há nas nossas almas, atordoam-nos e nos enche de prazer.
Todos nós
vivemos para o carnaval. Criadas, patroas, doutores, soldados, todos pensamos o
ano inteiro na folia carnavalesca.
O zabumba é
que nos tira do espírito as graves preocupações da nossa árdua vida.
O pensamento
do Sol inclemente só é afastado pelo regougar de um qualquer Iaiá me deixe.
Há para esse
culto do carnaval sacerdotes abnegados.
O mais espontâneo,
o mais desinteressado, o mais lídimo é certamente o Morcego.
Durante o ano
todo, Morcego é um grave oficial da Diretoria dos Correios, mas, ao
aproximar-se o carnaval, Morcego sai de sua gravidade burocrática, atira a
máscara fora e sai para a rua.
A fantasia é
exuberante e vária, e manifesta-se na modinha, no vestuário, nas bengalas, nos
sapatos e nos cintos.
E então ele
esquece tudo: a pátria, a família, a humanidade. Delicioso esquecimento!...
Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria durante dias seguidos.
Nas festas da
passagem do ano, o herói foi o Morcego.
Passou dois
dias dizendo pilhérias aqui, pagando ali; cantando acolá, sempre inédito,
sempre novo, sem que as suas dependências com o Estado se manifestassem de
qualquer forma.
Ele então não
era mais a disciplina, a correção, a lei, o regulamento; era o coribante
inebriado pela alegria de viver. Evoé, Bacelar!
Essa nossa
triste vida, em país tão triste, precisa desses videntes de satisfação e de
prazer; e a irreverência da sua alegria, a energia e atividade que põem em
realizá-la, fazem vibrar as massas panurgianas dos respeitadores dos
preconceitos.
Morcego é uma
figura e uma instituição que protesta contra o formalismo, a convenção e as
atitudes graves.
Eu o
bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenças falsamente proféticas do
sanguinário positivismo do senhor Teixeira Mendes.
A vida não se
acabará na caserna positivista enquanto os “morcegos” tiverem alegria...
LIMA BARRETO
RIO DE JANEIRO-RJ = 1881-1922
POESIA = Álvaro Pacheco
Os Poetas
Os poetas
como os profetas
têm o coração frio
e são
incapazes do amor.
Por isso Ezra Pound, Fernando Pessoa, Cristo,
Vincent Van Gogh – os poetas
elucubram as ficções
e os amores coletivos –
se intrometem nas revoluções
e falam demais – por isso
têm coração frio
para suportar as pessoas
e as suas aflições de abismo,
o sofrimento e a morte,
a matéria-prima
dos devaneios e truques semânticos
com que disfarçam
a frieza e o sem fim
das paixões que os atormentam
como aos profetas.
como os profetas
têm o coração frio
e são
incapazes do amor.
Por isso Ezra Pound, Fernando Pessoa, Cristo,
Vincent Van Gogh – os poetas
elucubram as ficções
e os amores coletivos –
se intrometem nas revoluções
e falam demais – por isso
têm coração frio
para suportar as pessoas
e as suas aflições de abismo,
o sofrimento e a morte,
a matéria-prima
dos devaneios e truques semânticos
com que disfarçam
a frieza e o sem fim
das paixões que os atormentam
como aos profetas.
ÁLVARO PACHECO
NASCEU EM JAICÓS-PI = 1933
CONTO = Artur Azevedo
A Nota De Cem Mil-Réis
O
Cavalcânti era um marido incorreto, para não empregar um adjetivo mais forte;
imaginem que os seus recursos não davam para acudir a todas as necessidades da
família e, no entanto, era ele um dos amantes da Josephine Leveau, uma cocotte
francesa, cujo nome era muito conhecido nas rodas alegres, e se prestava
aos trocadilhos mais interessantes, quer em francês, quer em português.
Como
a esposa do Cavalcanti era uma hábil costureira, recorreu à sua habilidade para
ajudar nas despesas de casa. Um dia fez um vestido para uma amiga, e, tão bem
feito, tão elegante, que a sua fama correu de boca em boca, e valeu-lhe uma
freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar. Havia meses em que ela
fazia trezentos mil-réis.
O
Cavalcanti não protestou, pelo contrário aprovou. Fez mais, como vão ver.
Uma
bela manhã, a Josephine mandou-lhe pedir cem mil-réis para uma necessidade
urgente, e ele não os tinha, nem sabia onde ir buscá-los. Hesitou durante algum
tempo em cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Já o leitor adivinhou que
o miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar à amante.
A
pobre senhora não manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto, abriu
uma gaveta onde guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de cem
mil-réis, ainda nova. Antes de levá-la ao marido, que esperava na sala de
jantar, contemplou-a durante algum tempo como para despedir-se dela para
sempre, e então notou que alguém escrevera num canto estas palavras com letra
miúda: "Nunca mais te verei, querida nota!" E como D. Margarida - ela
chamava-se Margarida - tivesse um lápis à mão, escreveu por baixo daquelas
palavras "Nem eu!".
O
Cavalcanti empalmou os cem mil-réis com um estremeção de alegria.
-
Este dinheiro faz-te muita falta? - perguntou ele.
-
Não - respondeu ela - hoje mesmo espero receber igual quantia.
Meia
hora depois, o Cavalcânti entregava a nota, dentro de um envelope, a Josephine
Leveau.
Nesse
mesmo dia D. Margarida recebeu os outros cem mil-réis que esperava. Contra o
seu costume, o Cavalcânti estava em casa.
-
Olha, disse-lhe ela, aqui estão os cem mil-réis que eu contava receber. A
freguesa é boa.
-
Quem ela é? perguntou o marido.
-
Não a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um vestido de seda,
riquíssimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato.
-
Mas é senhora séria?
-
Parece. É francesa, e casada com um banqueiro, disse-me ela. Naturalmente o
marido é também francês, porque ela chama-se Madame Leveau.
-
Leveau! repetiu o Cavalcânti empalidecendo.
-
Conheces?
-
Não.
-
Então, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O vestido foi hoje de
manhã cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro.
-
Onde mora essa Madame Leveau?
-
Na Rua do Catete.
Dizendo
isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem mil-réis.
-
Que coincidência! disse ela; a nota é da mesma estampa da qual te dei hoje de
manhã! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!...
Este
grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase "Nunca mais te
verei", e o seu acréscimo: "Nem eu!".
-
Que foi? perguntou o Cavalcanti.
-
A nota é a mesma!...
-
A mesma? repetiu o marido gaguejando.
-
A mesmíssima! Reconheço-a por causa destas palavras... Vê! a minha letra!...
O
Cavalcanti arranjou uma desculpa esfarrapada: disse que tinha pago os cem
mil-réis ao banqueiro Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D. Margarida
não engoliu a pílula, e foi à casa de Josephine certificar-se de que esta era
uma cocotte freqüentada por seu marido.
A
pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista. Ganha muito
dinheiro.
ARTUR DE AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908
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