domingo, 20 de dezembro de 2015
CRÔNICA = Carlos Drummond de Andrade
Organiza O Natal
Texto
extraído do livro “Cadeira de Balanço”, Livraria
José
Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.
Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10
meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo,
essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E
não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria
do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas
obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.
Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades
ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a
continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e
oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão
em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e
veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor:
a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a
betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo,
justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.
Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por
si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da
terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura
nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de
preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na
atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço
do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos
que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem
pretensão, celebrando o Advento.
A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas
antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um
anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das
galáxias, aberta à maneira de um livro.
A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart
a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação
para ninguém.
Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes
armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda
espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.
O trabalho deixará de ser imposição para constituir o
sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que
são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem
juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na
ordem do amor.
Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam,
e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada
habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.
A morte não será procurada nem esquivada, e o homem
compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.
O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e
elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a
Universidade inclusive.
E será Natal para sempre.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-MG = 1902-1987
POESIA = Manuel Bandeira
Espelho, amigo
verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
MANUEL BANDEIRA
RECIFE-PE = 1886-1968
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