domingo, 25 de janeiro de 2015
CONTO = Anton Tchecov
O salão do Conselheiro de Estado Charamikin está
mergulhado em agradável penumbra. A grande lâmpada de bronze, com seu
quebra-luz verde, tinge, à maneira de uma “noite da Ucrânia”, as paredes, os
móveis, as fisionomias… De quando em quando, na lareira expirante, abrasa-se
uma acha que se consome, e por um instante projeta nos rostos um clarão de
incêndio. Isto, porém, não perturba a harmonia geral das luzes. O tom de
conjunto, como diriam os pintores, mantém-se.
Ao pé da lareira, acha-se afundado em uma poltrona,
na postura dum homem que acaba de jantar, Charamikin em pessoa, senhor idoso,
de suíças cinzentas de funcionário, olhos de um azul doce. Transparece-lhe no
rosto a benignidade. Um sorriso melancólico franze-lhe os lábios. A seus pés,
sobre um mocho, com as pernas voltadas para a lareira e estirando-se
preguiçosamente, está sentado o Vice-Governador Lopnef, galharda figura de
cerca de quarenta anos.
Junto ao piano brincam os filhos de Charamikin –
Nina, Kólia, Nádia e Vânia.
Do salão da Sra. Charamikin chega, pela porta
entreaberta, uma luz tímida. Ali, sentada à secretária, vê-se Ana Pavlovna,
presidenta do Comitê das damas da cidade — jovem senhora, viva e picante, dos
seus trinta anos e mais alguma coisa. Através do lornhom, os olhos negros e
vivos deslizam pelas páginas de um romance francês. Sob o romance encontra-se,
dilacerado, um relatório do Comitê, do ano anterior.
— Antigamente, nesse ponto de vista — diz
Charamikin, piscando os olhos pacatos à claridade dos tições morrediços —,
nossa cidade era mais favorecida. Não se passava um inverno que não aparecesse
alguma estrela. Tivemos atores e cantores célebres. E agora?… Sabe o diabo o
que é! Afora prestidigitadores e tocadores de realejo, não vem mais ninguém.
Nenhum prazer estético… Parece que vivemos no mato… Sim… Lembra-se, Excelência,
daquele trágico italiano?… Como se chamava mesmo?… Um moreno, alto… Queira Deus
que eu me lembre! Ah! sim! Luigi Ernesto di Ruggiero. Um talento notável… Que
força! Era ele abrir a boca, e o teatro em peso estremecia. A minha
Anniutotchka se interessava muito pelo talento dele. Conseguiu-lhe o teatro e
vendeu bilhetes para dez espetáculos… Ele, em recompensa, lhe deu lições de
declamação e de música. Um amor de homem! Ele esteve aqui… não vá eu
enganar-me… há doze anos… Não, estou enganado… Menos, apenas dez. Anniutotchka,
que idade tem a nossa Nina?
— Vai fazer dez anos — gritou Ana Pavlovna lá do
seu escritório. — Por quê?
— Nada, minha filhinha, só para saber… E às vezes
também vinham bons cantores… Lembra-se do tenore di grazia Priliptchin? Que
amor de homem! Que aparência!… Um louro… semblante expressivo, maneiras
parisienses… E que voz, Excelência! Só tinha um defeito: cantava algumas notas
com o ventre e emitia o ré em falsete; no mais, tudo era bom. Dizia-se aluno de
Tamberlick… Anniutotchka e eu conseguimos para ele o salão do Círculo, e, como
prova de gratidão, ele cantava em nossa casa, dias e noites… Ensinava canto a
Anniutotchka… Esteve aqui, lembro-me bem, pela Quaresma, isto há… doze anos.
Não, mais!… Que memória, santo Deus! Anniutotchka, quantos anos tem a nossa
pequena Nádia?
— Doze anos.
— Doze… se acrescentarmos dez meses… Exatamente…
treze anos!… Antigamente havia na cidade — como direi? — mais vida… Vejamos,
por exemplo, os nossos saraus de beneficência. Que belos saraus que houve… Que
encanto! Tocava-se, cantava-se, declamava-se… Depois da guerra, lembro-me bem,
houve aqui prisioneiros turcos. Anniutotchka organizou um sarau em benefício
dos feridos. Rendeu mil e cem rublos… Os oficiais turcos ficaram doidos com a
voz de Anniutotchka, e levavam o tempo a lhe beijar a mão. Eh! eh!… Apesar de
asiáticos, são pessoas reconhecidas, os turcos. O sarau alcançou tamanho êxito
que — imagine V. Exa. — eu anotei no meu diário. Isto foi, se estou bem
lembrado, em 76… Não… Em 77… Não! Um momento! Quando foi mesmo que tivemos os
turcos? Anniutotchka, quantos anos tem o nosso Kolitchka?
— Eu tenho sete anos, papai — disse Kólia, garoto
trigueiro, de cabelos pretos como carvão.
— Sim, a gente envelhece — assenta Charamikin,
sorrindo. — A nossa energia já não é a mesma… Eis aí a razão de tudo… A
velhice, meu caro! Faltam precursores novos, e os velhos envelheceram… Já não
se tem o mesmo ardor. Quando eu era mais moço, não gostava que as pessoas se
aborrecessem… Era o primeiro a ajudar a nossa Ana Pavlovna… Tratava-se de
organizar um sarau de beneficência, uma tômbola, de dar apoio a uma celebridade
estrangeira? Eu largava tudo e metia mãos à obra… Um inverno, recordo-me bem,
corri tanto, trabalhei tanto, que caí doente… Não posso esquecer esse inverno…
Lembra-se do espetáculo que organizamos com a nossa Ana Pavlovna em benefício
das vítimas do incêndio?
— Em que ano foi isso?
— Não faz muito tempo… Em 79. Não, creio que em 80.
Um momento. Que idade tem nosso Vânia?
— Cinco anos — grita Ana Pavlovna lá do seu salão.
— Então foi há seis anos… Sim, meu caro, tantas
coisas… Agora já não há nada disso! O ardor já não é o mesmo.
Lopnef e Charamikin meditam. A acha morrediça
aviva-se pela última vez e se cobre de cinza.
ANTON TCHECOV
RÚSSIA =
1860-1904
POESIA = Alberto da Cunha Melo
Formas De Abençoar
Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.
Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.
Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.
Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.
No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo
ALBERTO DA CUNHA MELO
JABOATÃO DOS GUARARAPES-PR = 1942-2007
CRÔNICA = Ivan Ângelo
Assombrações
Existem uns amores que já morreram há muito tempo mas de vez em quando
aparecem, como uma assombração. Não, não falo de assombrações que voltam para
seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte poetizada por Carlos Drummond
de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que ficou insossa, como o Vadinho
de Jorge Amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz o ditado, sabem para quem
devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda daqueles para quem aparecem.
Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma aparição, e somem, de
improviso, sem arrepiar ninguém.
Às vezes esses amores nem se mostram inteiros. Surge uma boca, um seio,
uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta atenção, a figura desaparece:
era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma
leitura, ao escovarmos os dentes, e até na hora do amor. A gente pode estar
conversando, discutindo um negócio, um filme, uma jogada, e se intromete aquele
olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que repousa hoje na nossa perna
tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o fantasma sem-que-fazer e puxa
conversa.
Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura surge concreta,
sensível, do mesmo modo como nos vem um gosto de doce de abacaxi ou uma
chinelada de mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é ele mesmo quem
se convida.
Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela, aqueles dramas de
folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira essa mulher da
cabeça, até hoje é apaixonado por ela etc. Nada disso. É pura farra de
assombração, que irrompe de repente na hora própria ou imprópria,
independentemente de convite ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua
visita-relâmpago, muda ou falante, e some.
Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme gravou. Uma confessa
trêmula, temerosa de desamor: "Não sou mais virgem" - quando isso
tinha importância. Outra, cobrando: "Você não assume." Outra, no
escuro: "Quem é você?" Amores de outro mundo não se sentem obrigados
a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se entremostram.
Alguns perdem a viagem, e nos assaltam só com uma sensação, um nome,
umas covinhas, tranças negras. Não têm mais aparência corpórea. Será que
morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis como velhas cartas que
se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos reais em suas
fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita inesperada.
De maneira nenhuma perturbam o amor em curso, nem é essa sua intenção,
se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é feito de beijo e
resposta - e segue intocado por essas intromissões. Também não se pode dizer:
são desejos, frustações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e resposta. Nada
ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Nada ficou por
explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram generosas no dar,
alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à procura, estão
satisfeitas no seu canto.
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo contrário, são cordiais!
São borboletas: passam, enfeitam com algumas cores, vocejam e partem. Se deixam
alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.
IVAN ÂNGELO
BARBACENA-MG = 1936
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