domingo, 30 de novembro de 2014
CONTO = Artut Azevedo
Conjugo
Vobis
A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um
namorado misterioso, que via passar todas as tardes por baixo das suas janelas.
Era um bonito rapaz, dos seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem
trajado, sobrecasaca, chapéu alto, botinas de bico finas, bengala de castão de
prata, pincenez de ouro.
Limitava-se a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria
também, para animá-lo, mas, qual!, o moço parecia de uma timidez invencível, e
o romance não passava do primeiro capítulo.
- Com certeza um rapaz bem colocado, pensava
Angelina, mas o diabo é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira a
chegar à fala!
Afinal, um dia, passando, como de costume, ele
atirou para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas
palavras: "Amo-a, e desejava saber se sou correspondido."
No dia seguinte ele apanhou a resposta, que ela
atirou à rua: "Não posso dizer que o amo, porque não o conheço, mas
simpatizo muito com a sua pessoa.
Diga-me quem é."
* * *
Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a
que estão sujeitos os corações humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em
casa como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por
todos os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua família) a
fazerem as malas, porque no dia seguinte, às 5 horas da manhã, partiam para
Caxambu.
- Mas isto assim de repente! - protestou a velha.
- Vai ser uma atrapalhação!
- Não quero saber de nada! O médico disse-me que,
se eu não partisse imediatamente para Caxambu, era um homem morto! Eu devia até
seguir pelo noturno! Estou com uma congestão de fígado em perspectiva!.
Angelina ficou desesperada por não ter meios de
prevenir o moço e lá partiu para Caxambu com o coração amargurado.
* * *
Não a lastimem compadecidas leitoras: com 10 dias
de Caxambu Angelina tinha se esquecido completamente do namorado. Isso não foi
devido aos efeitos das águas, que não servem para o coração como servem para o
fígado, mas à presença de um rapaz que estava hospedado no mesmo hotel que a
família Seabra e, em correção e elegância, nada ficava a dever ao outro.
Era um médico do Rio de Janeiro, recentemente
formado, moço de talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna
própria.
O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o
seu fígado melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a idéia de um
casamento entre Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha
à cara.
Em conclusão, o casamento foi tratado lá mesmo,
sob o formoso e poético céu do sul de Minas, para realizar-se, o mais breve
possível, na Capital Federal.
* * *
Regressando das águas, onde se demorou um mês,
Angelina viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressão
de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e a
janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante de
debruçar-se no peitoril.
* * *
No dia do casamento, os noivos, as famílias dos
noivos, as testemunhas e os convidados lá foram para a pretoria.
- Tenham a bondade de esperar - disse-lhes o
escrivão. - O doutor não tarda aí.
Sentaram-se todos em silêncio, e pouco depois o
pretor fazia a sua entrada solene.
Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a
ponto de perder os sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro
namorado.
O mísero disfarçou como pôde a comoção, e
resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro à
mulher que o seu coração desejava.
* * *
Quando todos os estranhos se retiraram, ficando
na sala da pretoria apenas o juiz e o escrivão, este perguntou àquele: - Que
foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não parecia o mesmo!
Que lhe sucedeu?
O
moço confiou-lhe tudo.
O
escrivão, que era um velhote retrógrado e carola, ponderou:
-
Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento civil;
no
religioso é impossível.
ARTUR
AZEVEDO
SÃO
LUÍS-MA = 1855-1908
POESIA = Ascenso Ferreira
Maracatu
Zabumba de
bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
— Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
— Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?
ASCENSO
FERREIRA
PALMARES-PE = 1895 / 1965
PALMARES-PE = 1895 / 1965
CONTO = Lima Barreto
O Morcego
Correio da Noite, Rio, 2-1-1915
O carnaval é a expressão da nossa alegria. O ruído,
o barulho, o tantã espancam a tristeza que há nas nossas almas, atordoam-nos e
nos enche de prazer.
Todos nós vivemos para o carnaval. Criadas,
patroas, doutores, soldados, todos pensamos o ano inteiro na folia
carnavalesca.
O zabumba é que nos tira do espírito as graves
preocupações da nossa árdua vida.
O pensamento do Sol inclemente só é afastado pelo
regougar de um qualquer Iaiá me deixe.
Há para esse culto do carnaval sacerdotes
abnegados.
O mais espontâneo, o mais desinteressado, o mais
lídimo é certamente o Morcego.
Durante o ano todo, Morcego é um grave oficial da
Diretoria dos Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de sua
gravidade burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua.
A fantasia é exuberante e vária, e manifesta-se na
modinha, no vestuário, nas bengalas, nos sapatos e nos cintos.
E então ele esquece tudo: a pátria, a família, a
humanidade. Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria
durante dias seguidos.
Nas festas da passagem do ano, o herói foi o
Morcego.
Passou dois dias dizendo pilhérias aqui, pagando
ali; cantando acolá, sempre inédito, sempre novo, sem que as suas dependências
com o Estado se manifestassem de qualquer forma.
Ele então não era mais a disciplina, a correção, a
lei, o regulamento; era o coribante inebriado pela alegria de viver. Evoé,
Bacelar!
Essa nossa triste vida, em país tão triste, precisa
desses videntes de satisfação e de prazer; e a irreverência da sua alegria, a
energia e atividade que põem em realizá-la, fazem vibrar as massas panurgianas
dos respeitadores dos preconceitos.
Morcego é uma figura e uma instituição que protesta
contra o formalismo, a convenção e as atitudes graves.
Eu o bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenças
falsamente proféticas do sanguinário positivismo do senhor Teixeira Mendes.
A vida não se acabará na caserna positivista
enquanto os “morcegos” tiverem alegria...
LIMA BARRETO
RIO DE JANEIRO-RJ = 1881-1922
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