ORÍGENES LESSA
LENÇÓIS PAULISTA-SP = 1903-1986
Mal-entendido
Os
dois garotos brincam na praia. Um branquinho, queimado de sol, os olhos claros,
quase negro de tamanho sol toda manhã. O outro, negrinho retinto de avós na
senzala, de família no morro. Os dois descem à praia diariamente. O primeiro,
de um nono andar, apartamento de frente; tapete no chão, lustres de cristal de
muitas bocas, orgia de espelhos nas paredes. O outro, de um morro qualquer,
barraco de madeira com São Jorge enfeitado de flor, um "dois-dois" de
barro pintado, vaso de arruda na porta. Os amigos se encontram à hora certa,
camaradagem de pé na areia igualitária. O primeiro traz bola, o segundo traz
jogo. O primeiro é bem nutrido, atestado vivo de que caldo de vitamina batido
em liqüidificador é mesmo bom. O segundo é fino e sujo, os dentes
inexplicavelmente claros e fortes, o riso irreverente, a gaforinha de areia
sempre renovada nas pelejas da praia. Paulinho chama-se um, porque o avô foi
Paulo e com ele começou a fortuna da casa. O outro chama-se Jorge porque Ogum é
padrinho.
Descem
os dois todo dia. Quando Paulinho vem acompanhado pelos pais, Jorginho assiste
com um grave olhar de técnico aposentado, a pelada em que a censura familiar
não deixa preto se meter. Quando Paulinho vem só com a empregada — e é quase
sempre — nem é preciso pedir licença. Jorginho tem lugar seguro, que ele é
artilheiro-mor da vizinhança. E a pelada se prolonga. Por ele, a manhã toda, a
tarde toda, a vida toda. Não tem escola, não tem compomissos. Amendoim torrado
ele só vende mesmo à noite, ora à porta do Rian, ora do Roxy. Mas ao fim de
meia hora, de uma hora, a pelada vai-se desfazendo. Parentes e empregadas vêm
recolher os futuros Garrinchas, os Pelés e Zagalos em formação. Paulinho
fica mais tempo. E quando está só, ele e Jorginho descansam na areia.
Inseparáveis na pelada — Paulinho arma o jogo, Jorginho apanha o ouro e
arremata de maneira inapelável — uma funda rivalidade os separa em tudo mais.
Nunca se entendem. Porque Paulinho é importante, Jorginho um coitado. Paulinho
vai à escola á tarde, de Cadillac. Jorginho vende amendoim na boca da noite.
Oito anos, Paulinho. Nove anos, Jorginho. Reconhecendo a superioridade incrível
do negro, no bate-bola, reclamando a sua colaboração, garantidora de tentos,
Paulinho se vinga depois. E com a sua falta de diplomacia, tão própria da
idade, faz valer os seus títulos, para humilhar o companheiro.
—Tua
casa tem tapete no chão?
Resposta
negativa de Jorge.
—A
minha tem. Até no quarto da empregada.
Continua:
— Tem lustre de cristal?
Jorginho
pergunta o que é. Paulinho explica. Jorginho não tem. Luz no seu barraco vem
dos fifós.
Um vidro de sal de fruta, o outro de Phymatosan.
—Teu pai tem sítio em Petrópolis?
—Não — responde sério, Jorginho.
—O meu tem. .. Teu pai tem usina em Campos?
—Não.
—O meu tem.
—O meu tem.
—Teu pai tem iate?
—Não.
—O meu tem.
—O meu tem.
—Quantos apartamentos tem seu pai?
—Nenhum.
—O meu tem dez. Sóem
copacabana. O resto é na Tijuca.
—O meu tem dez. Só
Jorginho baixa os olhos, acaricia o monte de areia que está juntando.
Teu pai tem televisão?
Nos olhos de Jorginho passa uma nuvem de tristeza. Nem responde.
— O meu tem — informa Paulinho.
Apanha a bola molhada, procura limpá-la dos grãozinhos de areia,
pergunta de novo:
— Teu pai é deputado?
Jorginho não sabe o que seja aquilo, mas já diz que não, pelas dúvidas.
Deve ser coisa importante.
— Teu pai tem automóvel?
— Teu pai tem automóvel?
Jorginho sorri tristemente, negando.
—O meu tem — diz novamente em triunfo o garoto bem-nascido. — O meu
tem. Um JK 61 que eu vou na escola, um 62 que ela vai pra cidade, o Oldsmobile
da mamãe, a camioneta do sítio, pra gente ir pra Petrópolis.
Jorginho está completamente esmagado. Paulinho sorri, orgulhoso. E
agora ele nem pergunta mais, apenas informa: — O meu pai tem quarenta ternos de
roupa, o teu não tem...
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