CONTOS, CRÔNICAS E POESIAS





GOUVEIA MARINHO
LUÍS TVARES DE GOUVEIA MARINHO

GOIANA-PE  =  1901- 1983


Um  Pasquim

    O Pasquim, exemplar único, aparecia em qualquer ponto, onde não se esperava. Fazia-se, de repente, um rebuliço na cidade. Certa senhora costureira, que vivia em aparente estado de casada, e a quem ele não costumava poupar, mandava-o, masoquistamente, buscar onde quer que se encontrasse. E, lendo-o, logo caia em crise de histeria.
    “O Pimentão” (tal se chamava a venenosa folha manuscrita) era de publicação esporádica. Tinha redação na imaginária Rua das Casas. Seu proprietário era Língua Ferina. Colaboradores mais assíduos. P. Melado, P. Maluco e Zé-Carapuça. Circulou aí pelos anos de 1914 e 1915.
    Nessa época vivia em Goiana um Capitão da Guarda Nacional, já então praticamente extinta e irreverentemente apelidada de Não-sois-nada; oficial a quem sobejava presunção e escasseava elementar noção do ridículo. Inculcava-se comandante do Tiro-de-Guerra 333, e nas cerimônias cívicas ostentava aparatoso fardamento. Era protestante, e daí não ser visto, em traje de gala, nas procissões, à semelhança de outras patentes da “Briosa”.
    Perfilou-o assim o atrevido jornaleco:

É baixo e grosso,
tem mui bigode
e, quando fala,
parece um bode.

É comandante
de um batalhão
que muito atira...
Só para o chão.       

    O retrato fiel não tardou em apontá-lo à derrisão da turba gozadora.
    Ninguém se subtraía à maledicência d’“O Pimentão”, tivesse ou não rabo de palha ou telhado de vidro. Muitas barbas arderam, muitas foram postas de molho.
    Não se quebrava o mistério dos que, embuçados no anonimato, faziam o pasquim, que passou à História, enquanto de outros não guarda nem vaga lembrança a tradição oral. Quem se lembra, por exemplo d’“O Bombeiro”, que na segunda metade do século passado cobriu de chufas o português Raposo de Almeida, fundador do Instituto Histórico de Goiana? Dele tive notícia pela boca de distinto ancião daquela época recuada, o qual ainda guardava na memória uma quadra setissílaba de debique com o historiógrafo luso, impublicável na íntegra, e que começava: “Ó tu, Raposo danado”, e aludia no fim ao pseudônimo, José Mendes, que ele às vezes usava.
    Não faltavam conjeturas. De muita gente se suspeitava. Mas não se chegava a ter certeza cabal. E, dessarte, iam passando incólumes às bengaladas dos satirizados os redatores d’“O Pimentão”.
    Revelou-me um dia o segredo, que vinha guardando  religiosamente, o cúmplice Alberto Tavares: esses Aretinos caboclos, amigos incondicionais do ridento castigat mores, não eram outros senão o maestro Zuzinha, o lojista José Aranha e o Delegado Mário Pereira de Andrade. Já não pertencem ao número dos vivos
    Restará, acaso, alguma das vítimas? Nessuno lo çà.  




BASTOS TIGRE
RECIFE-PE = 1882-1957


Antologia Poética, 1982


Que te valeu viveres tantos anos,
A sofrer da existência os dissabores,
Enganado, a buscar novos enganos,
Trocando a velha dor por novas dores?

Falharam-te de glória os nobres planos;
Desejavas amor, tiveste... amores.
E, hoje, passas, cansado, entre os humanos,
Indiferente a ápodos e a louvores.

De nada te serviu quanto aprendeste
Do mundo; e tudo quanto viste e quanto
Em mil volumes, velho amigo, leste.

De nada. E a vida foi-se-te, entretanto.
Se para envelhecer é que viveste,
Que te valeu, ancião, viveres tanto?...





LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS, 1936

A Invenção Do "O"


Na era da pedra lascada
da língua falada
antes de inventarem a letra
que imitava a lua
as palavras diziam nada
e nada levava a nada
(aliás, nem precisava rua).
A frase ficava estática
de maneira majestática
a grandes falas presumíveis
permaneciam indizíveis
- imagens invisíveis
a distâncias invencíveis.
Vivia-se em cavernas mentais
numa inércia dramática.
Ir e vir, nem pensar
ninguém mudava de lugar
que dirá de sintática.
Aí inventaram o "O"
e foi algo portentoso.
Assombroso, maravilhoso.
Tudo começou a rolar
e a se movimentar.
O Homem ganhou "horizontes"
e palavras viraram pontes
e hoje existe a convicção
que sem a sua invenção
não haveria Civilização.
Um dia, como o raio inaugural
sobre aquela célula no pantanal
que deu vida a tudo,
veio o acento agudo.
E o homem pôde cantar vitória.
E começou a História.
(Depois ficamos retóricos
e até um pouco gongóricos).








GILBERTO FREYRE
RECIFE-PE  =  1900-1987

Mercado De Escravos
 
Entre negros esverdeados
pelas doenças, se exibiam
os corpos de bela plástica
dos animais cujos dentes
de tão alvos pareciam
de dentadura postiça.
Negras lustrosas e moças,
um femeaço de boas
formas, lotes de molecas
passivamente deixando
se apalpar por compradores,
ante as exigências, moles,
saltando, mostrando a língua,
estendendo o pulso como
bonecos desses que guincham.
Havia ainda os moleques
franzinos. Nada valiam
porque se davam de quebra
aos compradores de "lotes"
.





LEON  ELIACHAR
* CAIRO(Egito), 1922  =  V RIO(RJ), 1987

O Segredo Da Propaganda É
A Propaganda Do Segredo


Depois de tantos anos vendo televisão diariamente, chego a uma conclusão definitiva: é muito mais divertido e mais prático ver os anúncios. Enquanto as outras pessoas ficam aflitas tentando decorar os horários das novelas, das paradas de sucesso e dos chamados programas humorísticos, eu não tenho problema: ligo a televisão em qualquer canal e vejo os anúncios sem preocupação de horário. Vocês talvez achem que é loucura ver os mesmos anúncios diversas vezes, mas posso garantir que os anúncios variam muito mais que as piadas e as músicas que são servidas todos os dias. Pelo menos os anúncios são bem bolados, alguns até inteligentes. A técnica é chatear tanto até ficarem em nosso subconsciente — se é que alguém consegue ter subconsciente assistindo televisão.
Os refrigerantes, por exemplo: quase todos fazem as garrafas dançar na nossa frente e tocam uma musiquinha que chega a dar sede. Aí a gente não resiste: vai à geladeira e bebe um copo de água.
Mas bom mesmo é anúncio de sabonete: aparece cada moça bonita que vou te contar. E com uma grande vantagem, as moças não falam, só aparecem, ligam o chuveiro e ficam noivas dentro da espuma. Por mais que a gente saiba que aquilo é anúncio de sabonete, fica sempre aquela dúvida se um dia eles não vão resolver dar o nome daquele chuveiro ou, quem sabe, o telefone da moça.
Geniais mesmo são as geladeiras que duram toda a vida. Mas muito mais geniais são os textos garantindo que cabe tudinho dentro delas, mas acho que não têm tanta certeza, pois fazem questão de botar uma moça bem bonita pra mostrar a geladeira — e a gente tem é vontade de comprar a moça, mesmo sem o "certificado de garantia".
E as televisões, baratíssimas, cada vez mais vendidas, dentro dos novos planos de venda. Ao invés de bolarem uma televisão mais perfeita, ficam é bolando planos de venda. No dia em que inventarem uma televisão que focalize a cara de um sujeito com menos de três orelhas, não precisam nem fazer anúncio: é só exibir, que esgota no mesmo dia.
Existe anúncio de todo tipo: tecidos que não amarrotam, tecidos que dão prêmios, tecidos que dão desconto, tecidos coloridos que são apresentados em preto-e-branco, tecidos brancos que ficam cada vez mais brancos à medida que vai surgindo um novo sabão em pó. Mas é o que eles pensam: o branco deles, lá em casa, todo mundo tá vendo que é cinza.
O mais engraçado são os anúncios de inseticidas que matam todos os insetos, menos as moscas do estúdio.
Anuncia-se também muita banha, muito pneu, muito perfume, muito sapato, muito automóvel, muita calça, muita bebida e muita pílula pra dor de cabeça. Parece até que um anúncio depende do outro — é como se fosse uma novela, com a vantagem de a gente sempre saber qual o final de cada anúncio. E não pensem que sou o único a achar os anúncios mais interessantes que os programas: os donos das emissoras também acham — senão não ocupavam a maior parte do tempo com anúncios. Nos intervalos é que colocam alguns programinhas — por absoluta falta de mais anúncios.
Reparem só: os programas de humor mostram o lado negativo das pessoas, os personagens são quase todos fossilizados, gagos, surdos, cegos, velhos borocochôs ou sem sexo definido. As novelas exploram seres anormais dentro de um mundo de misérias e lágrimas. Já os anúncios apresentam um mundo de otimismo, onde tudo é bom e saudável, não quebra, dura toda a vida e qualquer um pode adquirir quase de graça, pagando como puder, no endereço mais próximo da sua casa. O único detalhe que nos deixa um pouco frustrados é que a moça que dá os endereços fala tão preocupada em não errar que a gente não consegue decorar nenhum endereço. Em compensação, sabe de cor a moça todinha.


CLÓVIS CAMPÊLO
RECIFE-PE = 1951


A BARBÁRIE


Quando fugiu a barbárie
das ruas estreitas do gueto,
expondo da vida a cárie,
cantando a morte em dueto,

com a fúria de cão sem dono
quando descobre o abandono,

qual sinistra procissão
sem benção ou extrema-unção,
sem chance de algum perdão,

devolveu ao mundo fausto
as dores do holocausto!

Recife, 1991








EDUARDO GALEANO
URUGUAI, 1940-1915

Memórias De Fogo

A Mulher e o Homem sonhavam
que Deus os estava sonhando.
Deus os sonhava enquanto cantava e agitava seus
maracás, envolvido em fumaça de tabaco.
E se sentia feliz, e também estremecido pela
dúvida e pelo mistério.
Os índios Makiritare sabem
que, se Deus sonha com comida, frutifica e dá de
comer. Se Deus sonha com a Vida,
nasce e dá de nascer.
A Mulher e o Homem sonhavam
que no sonho de Deus aparecia
um grande ovo brilhante.
Dentro do ovo, eles cantavam, e dançavam,
e faziam um grande alvoroço,
porque estavam loucos de vontade de nascer.
Sonhavam que no sonho de Deus
a alegria era mais forte que a dúvida e o mistério,
e Deus sonhando os criava, e cantando dizia:
- Quebro este ovo, e nasce a Mulher, e nasce
o Homem, e juntos viverão e morrerão.
Mas nascerão novamente.
Nascerão e tornarão a morrer,
e outra vez nascerão.
E nunca deixarão de nascer,
porque a morte é uma mentira.








BARÃO DE ITARARÉ (*)
Como Entrou No Céu O Primeiro Advogado
 
Logo que Santo Ivo morreu, encaminhou-se ao Céu e bateu à porta, que São Pedro não se atreveu a abrir, subestimando as razões do bom santo.
— Faço o que quiseres — repetia o porteiro do Céu —, mas não acho que deva permitir a entrada a um advogado, não só porque nem um tem assento entre os santos, mas também porque, muito ao contrário, juraria que se encontram no inferno todos os de tua profissão.
Santo Ivo não se desconcertou; antes, como bom advogado, teve tão convincentes razões para rebater as de São Pedro que este lhe permitiu finalmente entrar no Céu, mas com a condição de permanecer junto à porta.
O hóspede entrou calmamente, sentou-se no lugar indicado por São Pedro, que foi participar a Nosso Senhor o sucedido...
— Fizeste mal! Muito mal, Pedro! — respondeu Deus, quando acabou de escutá-lo. — Havia resolvido que nenhum advogado entraria no Céu, e tinha cá minhas razões para isso. Mas já que está, deixa ficar; sem embargo, não deixes que ele se misture com os outros santos, pois do contrário acabarão no Céu a paz e a boa harmonia. Não o deixes passar além da porta.
Aborrecido e cabisbaixo, voltou São Pedro aonde estava Santo Ivo e comunicou-lhe as ordens dadas pelo Senhor. O Santo advogado encolheu os ombros e, à guisa de passatempo, começou a entabular conversa com São Pedro.
— Que posto ocupas aqui no Céu?
— Não sabes? Sou o porteiro.
— Por quanto tempo?...
— Para todo o sempre.
— Deixa disso. Só se tiveres algum contrato firmado...
— Não há contrato nem coisa que o valha, e para dizer a verdade não há necessidade disso.
— Como assim? Então não estás vendo, grande ingênuo, que qualquer dia Deus pode ter a idéia de te destituir, sem mais nem menos, do cargo que com zelo vens desempenhando há tanto tempo, sem que possas fazer valer teus direitos?
São Pedro coçou a orelha, e, mais amofinado que antes, foi novamente falar com Deus.
— Vamos lá, que é que pensas?
— Preciso de um contrato em que se declare que sou o porteiro do Céu para todo o sempre. Até hoje temos deixado as coisas andar à vontade; mas se vos der na idéia, qualquer dia me destituís do cargo que com tanto zelo...
— Não te dizia eu? Tudo isso são trapaças daquele advogadozinho que tens na porta e que soube encher-te a cabeça.
E ajuntou depois, tomando uma resolução:
— Anda, Pedro, corre e manda-o entrar imediatamente, pois prefiro tê-lo perto de mim a vê-lo junto à porta.
Eis como entrou no Céu o primeiro advogado.

(*) APARÍCIO TORELLY = SÃO LEOPOLDO-RS  =  1895 / 1971








AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
BELO HORIZONTE-MG = 1937

A Cegueira E O Poder

Em tempos de eleições, quando muitos buscam o poder, andei relendo a conhecida tragédia grega- "Édipo Rei", de Sófocles. E a li , acidentalmente, porque Didier Lamaison, não só a retraduziu, mas me fez chegar o romance que escreveu sobre o tema.
"Édipo Rei" é um texto sobre o poder. E sobre a cegueira.
Sobre o poder, porque traça a trajetória do menino rejeitado, que agora adulto, volta à Tebas, enfrenta a esfinge, decifra-lhe os enigmas e acaba assumindo a coroa. Mas é também uma estória sobre a cegueira, porque Édipo, caindo em desgraça, termina cego, amaldiçoado e vai passar o resto de seus dias, exilado, como mendigo.
Mas a cegueira em Édipo não se restringe ao fato de ele mesmo ter se cegado ao descobrir que tinha sido involuntariamente o assassino do próprio pai e esposado a mãe, com quem teve quatro filhos. Ele arrancou seus olhos por não suportar ver-se a si mesmo e ver-se no espelho alheio. Não mais ver, era não só a forma de se punir, mas de não ter que encarar a realidade.
A tragédia de Sófocles, que já teve tantas e tão ricas análises, agora nos fornece mais essa leitura. Há um Édipo antes e depois de subir ao trono. Na verdade, antes de ali chegar, apesar de sua inteligência e de sua astúcia, ele não se conhecia. Ele não se conhecia, porque ninguém se conhece integralmente enquanto não chega ao poder. Édipo, portanto, se conhecia apenas parcialmente, não sabia inteiramente quem era. O poder lhe deu uma dupla visão. De um lado a visão soberana e privilegiada de tudo. Por outro lado, obrigou-o a ver o seu lado oculto, a sua sombra, a sua latente tragédia.
Na primeira fase de seu governo ele não sabia, ele não via o que estava sendo gestado na trama do seu destino. Quando desencadeia-se a peste e sobrevem uma série morticínios em Tebas ele vai procurar saber a causa. E quanto mais ele procura e indaga, procurando externamente os motivos, mais vai descobrindo que ele próprio é o motivo de tanta desgraça.
Herói trágico, ele assume integralmente seu papel, arranca os olhos, pede perdão à cidade e some na mendicância.
Não são bem assim certos governantes de nosso tempo.
Ao darem de cara com a tragédia que se avoluma, desviam os olhos, cantarolam, fazem uma piada e negam peremptoriamente o que o adivinho Tirésias afirma. Pelo fato de estarem no poder, e terem de certa forma uma visão privilegiada, começam a ver menos do que aqueles que estão fora do poder. Na verdade, de tanto ver, começam a desver. Fazem do exercício de não-ver, uma forma de sobrevivência. Ficam cegos para aquilo que não querem ver nem saber.
A metáfora do olhar é algo central nessa peça. Pois Tirésias- o velho que revela ao rei a sua tragédia de assassino incestuoso- é também cego. Cego e fora do poder, Tirésias vê melhor do que aqueles que estão no palácio. Ele é o cego que enxerga a realidade dos fatos e zela para que a verdade ( por mais crua que seja) venha a público.
Tirésias hoje estaria numa CPI, na Policia Federal, no Supremo ou qualquer dessas instâncias que devem zelar pelo bem público. Necessário é revelar e desvelar os fatos, pois só com essa purgação a paz e a prosperidade voltariam a reinar em Tebas.








ÁLVARO PACHECO
JAICÓS-PI, 1933

Herança


Trago os lábios úmidos do leite
que não bebi, tenho
as mãos cheias das coisas que perdi
lavo o coração de todas
as emoções perdidas, deixo
a herança dos sonhos que não tive
e não soube suportar, visto
as roupas (coloridas) invisíveis e mancho
os olhos de visões — e não as tive
meu filho, agarra-as por tua vez, agarra-as
por minha vez e sucede
teus lábios na fonte escaldante.







ANÍBAL MACHADO
SABARÁ-MG  =  1894-1964

O Grande Clandestino

Eu me distraio muito com a passagem do tempo.
Chego às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa escondido. Mas que velocidade!
Basta ver o estado das coisas depois que desperto: quase todas fora do lugar, ou desaparecidas; outras, com uma prole imensa; outras ainda, alteradas e irreconhecíveis. Se durmo de novo e acordo, repete-se o fenômeno. 
Sempre pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não!
Eu queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo todo íntimo e não disponho de tribunas.
Além do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se pode apreciar o resultado de seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.
O que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao menos a disfarçar a evidência de suas metamorfoses.
É de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora. Isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com ele, façamos dele um aliado.
Aí, sim: destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida. Perde-se até a ideia da morte. Então a gente aproveita para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar.
O tempo fica assim tão escondido dentro de nós, que se tem a impressão que fugiu para sempre e se esqueceu.
Em verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes onde parece pernoitar.
Rói as pedras como o vento, rói os ossos como um cão. O que mais admira é a extrema delicadeza com que pratica essas violências.
Todos falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta de velocidade, à medida que nos distanciamos de nossas origens. E quase para quando o esperamos na solidão!
Meu mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocá-lo.  Fico horas à janela vendo-o passar. É um vício.
Oh, como se diverte! Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma instituição, uma catedral – tanto faz.
O desagradável é quando de repente se retira de algum objeto ou de alguém. É claro que prossegue depois. Mas deixa sempre uma coisa morta...
Franqueza, nessa hora dá um aperto no coração, uma nostalgia!...
Contudo não se deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de qualquer maneira.
E é até possível que não exista.
Seu propósito evidente é envelhecer o mundo.
Mas a resposta do mundo é renascer sempre para o tempo.

(Aníbal Machado, in "Cadernos de João")







CRUZ DO ESPÍRITO SANTO-PB = 1884-1914

Solitário


Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
-- Velho caixão a carregar destroços --

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!






ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908


Conjugo Vobis

A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um namorado misterioso, que via passar todas as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem trajado, sobrecasaca, chapéu alto, botinas de bico finas, bengala de castão de prata, pincenez de ouro.
Limitava-se a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria também, para animá-lo, mas, qual!, o moço parecia de uma timidez invencível, e o romance não passava do primeiro capítulo.
- Com certeza um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas o diabo é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira a chegar à fala!
Afinal, um dia, passando, como de costume, ele atirou para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras: "Amo-a, e desejava saber se sou correspondido."
No dia seguinte ele apanhou a resposta, que ela atirou à rua: "Não posso dizer que o amo, porque não o conheço, mas simpatizo muito com a sua pessoa.
Diga-me quem é."
* * *
Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a que estão sujeitos os corações humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em casa como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por todos os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua família) a fazerem as malas, porque no dia seguinte, às 5 horas da manhã, partiam para Caxambu.
- Mas isto assim de repente! - protestou a velha. - Vai ser uma atrapalhação!
- Não quero saber de nada! O médico disse-me que, se eu não partisse imediatamente para Caxambu, era um homem morto! Eu devia até seguir pelo noturno! Estou com uma congestão de fígado em perspectiva!.
Angelina ficou desesperada por não ter meios de prevenir o moço e lá partiu para Caxambu com o coração amargurado.
* * *
Não a lastimem compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu Angelina tinha se esquecido completamente do namorado. Isso não foi devido aos efeitos das águas, que não servem para o coração como servem para o fígado, mas à presença de um rapaz que estava hospedado no mesmo hotel que a família Seabra e, em correção e elegância, nada ficava a dever ao outro.
Era um médico do Rio de Janeiro, recentemente formado, moço de talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna própria.
O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o seu fígado melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a idéia de um casamento entre Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha à cara.
Em conclusão, o casamento foi tratado lá mesmo, sob o formoso e poético céu do sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possível, na Capital Federal.
* * *
Regressando das águas, onde se demorou um mês, Angelina viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressão de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante de debruçar-se no peitoril.
* * *
No dia do casamento, os noivos, as famílias dos noivos, as testemunhas e os convidados lá foram para a pretoria.
- Tenham a bondade de esperar - disse-lhes o escrivão. - O doutor não tarda aí.
Sentaram-se todos em silêncio, e pouco depois o pretor fazia a sua entrada solene.
Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a ponto de perder os sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro namorado.
O mísero disfarçou como pôde a comoção, e resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro à mulher que o seu coração desejava.
* * *
Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria apenas o juiz e o escrivão, este perguntou àquele: - Que foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não parecia o mesmo!
Que lhe sucedeu?
O moço confiou-lhe tudo.
O escrivão, que era um velhote retrógrado e carola, ponderou:
- Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento civil;
no religioso é impossível.







ASCENSO FERREIRA
PALMARES-PE  =  1895 / 1965
Maracatu


Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...

          — Luanda, Luanda, onde estás?
          Luanda, Luanda, onde estás?

As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...

          — Luanda, Luanda, onde estás?
          Luanda, Luanda, onde estás?

A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...

          — Luanda, Luanda, onde estou?
          Luanda, Luanda, onde estou?











HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA  =  1886-1934

A Queda De Abraão


Abraão Machalon, filho de Samuel Machalon, era um tipo legítimo da sua raça. O povo de Israel jamais tivera varão mais apegado às tradições; e foi por isso, talvez, que Jeová, na sua alta sabedoria, que lhe deu por esposa a Raquel, filha mais velha de Jacó Benoliel.
No dia da união, após a solenidade, resolveu o casal Machalon festejar esse acontecimento indo ao Municipal, onde se realizava, naquela noite, um espetáculo da Companhia Lírica.
Na bilheteria, Abraão indagou:
- Quanto custa uma cadeira, cavalheiro?
- Vinte mil réis, em baixo, na platéia, - informou, seco, o bilheteiro.
Abraão pensou um instante, e insistiu:
- Cada cadeira dá para duas pessoas?
- Não, senhor; cada pessoa ocupa uma cadeira.
- E não há lugares mais baratos?
- Há, como não? Nas galerias, lá em cima. Cada galeria custa cinco mil réis.
Abraão meditou um instante, lembrando-se que não se casaria duas vezes, e que poderia, perfeitamente, fazer aquela loucura, gastando dez mil réis. Comprou, assim, duas galerias, e, meia hora depois, estava em cima, no "paraíso" do teatro, aplaudindo, ao lado de Raquel, a voz poderosa do tenor que cantava a "Tosca".
Pouco a pouco, foi o honrado descendente dos patriarcas tomando gosto pelo drama cantado. Aplaudia com prazer, com alma, com entusiasmo. E na sua exaltação, dobrava-se todo para a frente, em termo de virar pelo parapeito, e tombar lá em baixo, na platéia, espatifando-se no chão.
Olhos pregados na cena, Raquel sorria, beatificante. E sorria, deliciada, quando o marido, a aplaudir Cavaradossi no fim do segundo ato, se entusiasmou tanto, que pendeu para a frente, escapulindo da galeria, para rebentar o crânio lá embaixo, nas cadeiras. Por uma felicidade, porém, enganchou os pés nos frisos de um camarote de segunda ordem, ficando ali pendurado, a cabeça para baixo, o paletó cobrindo o pescoço.
O rebuliço no teatro foi enorme. Correrias, atropelos, gritos, palavras de terror. E no meio de tudo isso, só se ouvia a voz de Raquel, debruçada no parapeito:
- Abraão?... Abraão?... Não caias, Abraão!
E para animá-lo a salvar-se:
- Lá em baixo custa vinte mil réis, Abraão!








AUGUSTO DOS ANJOS
CRUZ DO ESPÍRITO SANTO-PB  =  1884 / 1914


O Condenado
           "Folga a Justiça e geme a natureza"
                                      Bocage


Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d’amargura
- Ei-lo que passa - réprobo maldito.


Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.


E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.


O mundo é um sepulcro de tristeza.
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.



ARTUR DE AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA, 1855-1908

Miserável 


O noivo, como noivo, é repugnante:
Materialão, estúpido, chorudo,
Arrotando, a propósito de tudo,
O ser comendador e negociante.

Tem a viuvinha, a noiva interessante,
Todo o arsenal de um poeta guedelhudo:
Alabastro, marfim, coral, veludo,
Azeviche, safira e tutti quanti.

Da misteriosa alcova a porta geme,
O noivo dorme n'um lençol envolto...
Entra a viuvinha, a noiva... Oh, céu, contem-me!

Ela deita-se... espera... Qual! Revolto,
O leito estala... Ela suspira... freme...,
E o miserável dorme a sono solto!...







ARTHUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908

Plebiscito

A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste: 
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém: 
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. 
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: 
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. 
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? 
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: 
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra: 
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: 
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...


Texto extraído do livro “Contos fora da moda”, Editorial Alhambra – Rio de Janeiro, 1982, pág. 29.







JOÃO CABRAL DE MELO NETO
RECIFE-PE = 1920-1999

O Cão Sem Plumas


A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.

Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.






CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-MG = 1902-1987

Organiza O Natal


Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.
Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.
Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.
A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.
A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.
Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.
O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.
Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.
A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.
O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.
E será Natal para sempre.

Texto extraído do livro “Cadeira de Balanço”, Livraria
José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.


URUGUAI, 1940–2015

O Direito Ao Delírio


Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.
As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar.
Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar?
Que tal se delirarmos por um momentinho?
Ao fim do milênio vamos fixar os olhos mais para lá da infâmia para adivinhar outro mundo possível.
O ar vai estar limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das paixões humanas.
As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão assistidas pela televisão.
A televisão deixará de ser o membro mais importante da família.
As pessoas trabalharão para viver em lugar de viver para trabalhar.
Se incorporará aos Códigos Penais o delito de estupidez que cometem os que vivem por ter ou ganhar ao invés de viver por viver somente, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.
Em nenhum país serão presos os rapazes que se neguem a cumprir serviço militar, mas sim os que queiram cumprir.
Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.
Os cozinheiros não pensarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.
O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza.
E a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se quebrada.
A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.
As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.
A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, voltarão a juntar-se bem de perto, costas com costas.
Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória.
A perfeição seguirá sendo o privilégio tedioso dos deuses, mas neste mundo, neste mundo avacalhado e maldito, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.





GOUVEIA MARINHO
LUIZ TAVARES DE GOUVEIA MARINHO
GOIANA-PE  =  1901-1983

Jornada Vencida

PASSEI pela vida
sem nunca viver.
Jornada vencida,
hora é de morrer.

Que monótona a ida
à paz do Não-Ser !
Concluí a subida,
começo a descer.

E não me intimida
a feral descida,
ao anoitecer.

- O rio da vida,
ah! nada o convida
a retroceder.



ANTON TCHEKHOV
RÚSSIA, 1860-1904

Os Nervos

O arquiteto Dmitri Osipovitch Vaksin, que regressou da cidade para sua casa de campo, acha-se impressionado pela sessão espírita a que assistiu. Ao despir-se para deitar-se em seu leito solitário (pois sua mulher foi ao santuário de São Sergio), Vaksin vai recordando tudo quanto acabou de ver e ouvir. Falando claro, não foi uma verdadeira sessão espírita: a noitada passou-se em conversações tétricas. Uma senhorita começou falando em adivinhação do pensamento. Daí passaram para os espíritos, para os fantasmas; das aparições para os enterrados vivos... Um senhor leu a historia de um morto que se revirou no caixão. Vaksin pediu um instrumento de percussão e demonstrou às senhoritas como proceder para comunicar-se com os espíritos. Chamou seu tio Klavdi Mironovitch e perguntou-lhe, mentalmente, se não seria melhor na ocasião pôr a casa em nome de sua mulher. Ao que o tio respondeu: "Prever sempre é bom."
- Há muitas coisas misteriosas... e temíveis, na Natureza -refletia Vaksin cobrindo-se com o cobertor. - Não são os mortos que assustam: é a incerteza...
Soa uma hora da manhã. Vaksin vira-se para o outro lado e lança um olhar à luzinha azul da lamparina de azeite. A luzinha cintila e apenas alumia os cantos e o retrato do tio Klavdi Mironovitch, colocado na parede, em frente à cama.
- Que faria, se nesta penumbra me aparecesse o espírito de meu tio? -pensou Vaksin. - Não, são bobagens, isso não pode acontecer! Os fantasmas são invencionices de gente ignorante...
Todavia, Vaksin cobre a cabeça com o lençol e fecha os olhos. Desfilam-lhe pela imaginação o morto que se remexe no caixão, a falecida sogra, um companheiro enforcado, uma jovem afogada... Vaksin procura pensar em outras coisas, porem seus esforços são inúteis. Seus pensamentos avolumam-se mais fantásticos, mais embrulhados. O pavor o oprime.
- Que diabo! Tenho medo como um menino!... É vergonhoso!
Tique-taque, tique-taque; ouve-se o barulho do relógio atrás da parede. Na igreja do lugar batem os sinos, um toque lento... triste... Vaksin sente um frio correndo-lhe pela espinha, pela nuca. Tem a impressão de que alguém respira a seu lado. Parece-lhe que o tio sai da moldura e se inclina sobre ele... Tem um medo invencível. Aperta os dentes, prende a respiração. Por fim, quando pela janela aberta entra zumbindo um inseto, não aguenta mais e toca desesperadamente a campainha.
- Dmitri Osipovitch, que deseja o senhor? -diz ao cabo de alguns minutos a voz da governante alemã.
- É você, Rosalia Carlovna? -diz Vaksin com alegria. -Por que você se incomodou? Gravile poderia...
- Gravile foi com sua permissão ao povoado. A pequena tambem saiu... Não há mais ninguem em casa... Mas, que deseja o senhor?
- Eu queria... Mas, entre!... não se acanhe, está escuro... A gorda e rubicunda alemã entra no dormitorio e para, à espera da explicação.
- Sente-se por um momento... Verá de que se trata... "Sobre o que a posso interrogar?"_ pensa Vaksin, olhando de revés o retrato do tio e sentindo tranquilizarem-se-lhe os nervos. - Queria pedir-lhe... que, amanhã, quando o criado for à cidade... lembre-o para trazer cigarros... Mas sente-se!
- Deseja alguma coisa mais?
- Sim, quero... não quero nada... Mas, por que não se senta? (Pensarei ainda outra coisa).
- Não é decente para uma senhorita permanecer no quarto de um cavalheiro... E percebo, senhor, a sua brincadeira... compreendo... Por causa de cigarros não se desperta ninguém... compreendo...
Rosalia Carlovna sai do quarto. Vaksin, já tranquilizado pela conversa e envergonhado de sua covardia, cobre a cabeça com o lençol e fecha os olhos. Passam-se uns dez minutos relativamente suportáveis, mas logo se repetem as mesmas coisas. Tateando, procura os fósforos; acende a vela sem abrir os olhos. Contudo, a claridade não lhe arrefece o medo. Sua imaginação perturbada vê o tio revirar os olhos e alguém espreitá-lo de um dos cantos da parede.
- Chamá-la-ei outra vez! Que o diabo a carregue!... - diz Vaksin. - Direi que estou mal... Pedirei remédios...
Vaksin toca a campainha. Não obtém resposta. Chama outra vez, e somente respondem os sinos da igreja. Preso de terror cego, sai como louco da alcova e, benzendo-se, dispara, pelo corredor, para o quarto da governante. Está descalço e em trajes menores.
- Rosália Carlovna! -chama com voz tremula. - Rosália Carlovna! Você dorme? Estou... estou doente...
Ninguém responde. O silencio é completo.
- Peço-lhe, compreende? peço-lhe. Para que tantos melindres? Não entendo... e alem disso se alguem está doente... Em sua idade e tão escrupulosa...
- Direi à sua senhora... Deixe-me em paz! Sou uma moça honrada!... Quando eu servia em casa do barão Anzig e o barão quis entrar em meu quarto procurando fósforos, compreendi tudo... Imediatamente compreendi que fósforos procurava e avisei a baronesa... Sou uma moça honesta...
- Que tenho eu que ver com sua honestidade! Estou doente... e quero umas gotas... entende? Estou mal...
- Sua senhora é uma boa mulher, honrada; o senhor deve amá-la. Sim! É uma pessoa nobre! Não tenho intenção de ser sua rival.
- Estúpida! Você é uma estúpida! Compreende-me? Vaksin recosta-se na ombreira da porta, cruza os braços, e assim fica, à espera que o medo se vá. Não tem forças para voltar ao quarto e ver aquela luzinha brilhante e o retrato do tio. Também não lhe é possível ficar meio nu no corredor. O medo não o abandona. O corredor está escuro e tem quase a certeza de que em cada canto alguma coisa terrível o espera. Volta o rosto para a parede e, ao fazê-lo, parece-lhe que tiraram a sua camisa e lhe batem no ombro.
- Demônio!... Rosália Carlovna! Nenhuma resposta. Vaksin, indeciso, entreabre a porta e lança um olhar ao quarto. A virtuosa alemã dorme tranquilamente. Uma lamparina ilumina os relevos de seu corpo maciço. Vaksin entra e senta-se no baú ao lado da porta. A presença de um ser vivo, mesmo dormindo, o tranquiliza; sente-se aliviado.
- Que durma a tonta! Ficarei aqui até que amanheça e então irei embora... Agora amanhece cedo...
Esperando a luz do dia, Vaksin encolhe os pés, põe a mão debaixo da cabeça e fica refletindo: "Cuidado com os nervos!... Eu, homem culto, instruído, tenho medo... medo como uma criança... Que vergonha!".
Pouco a pouco, ouvindo a respiração monotona de Rosalia Carlovna, acalma-se completamente.
Às seis horas, a senhora Vaksin, ao voltar de sua peregrinação, entra no dormitorio e, ali não encontrando o marido, vai ao quarto da alemã a fim de pedir-lhe dinheiro miudo para pagar o carro. Ao entrar, depara com o seguinte quadro: Rosália Carlovna, sufocada de calor, dorme em sua cama, e, a um metro dela, acocorado no baú, seu marido ronca docemente, descalço e em trajes menores. Que fez a mulher e qual a cara do marido ao despertar, que outros descrevam. Estou esgotado e baixo as armas.





BARÃO DE ITARARÉ (*)



 Carta Branca

 

Pobre de mim! que, em vão, ansioso, espero
Notícias de meu bem, que está distante.
O meu amor aumenta a cada instante
E cada vez me torno mais sincero

Por ser assim, bondoso e tolerante,
Assim me paga o quanto bem lhe quero.
Talvez se eu fosse um pouco mais severo,
Seria ela mais meiga, mais constante.

E há tanta moça aqui nesta cidade...
E eu tão triste, curtindo esta saudade,
Que o pranto dos meus olhos não se estanca.

Se a desalmada, ao menos, me mandasse
Uma cartinha, p'ra secar-me a face...
Se me mandasse, ao menos, carta branca...
  (*) APARÍCIO TYORELLY  =  Gaúcho de SÃO LEOPOLDO  =  1895 / 1971

 Poema publicado sob o pseudônimo de Apporelly




ÂNGELO MONTEIRO
PENEDO-AL, 1942

Soneto De Tortura E Desencanto

 Não sei que angústia me incomoda o peito
que não posso estar firme nem parado.
Com o pensamento sempre desvairado,
falta-me calma até quando me deito.

A noite vago as ruas, odeio o leito,
não durmo, não descanso, não me enfado,
não fujo, não me mato, e o rosto irado
até de rir perdeu a forma e o jeito.

Por isso não te admire, amiga minha,
que ternura hoje em dia me careça
na voz, que tantas vezes te acarinha.

Mas é que sofro de sentir diverso:
e onde repousarei minha cabeça,
se a dor humana não couber num verso?




MILLÔR FERNANDES 
RIO DE JANEIRO-RJ = 1923-2012

A Mensagem

 Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo: 
E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel, voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?




ALBERTO DA CUNHA MELO

JABOATÃO DOS GURARAPES-PE  =  1942-2007

O Presente

O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
Deles estará protegido,
o que os homens não vêem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer.
O que hoje recebes
Não pode ser devolvido. 




ARTHUR AZEVEDO

Um Don Juan de Província


Quando fui pela primeira vez àquela patriarcal cidade de província, o Linhares, que eu chamava primo, por ser filho da primeira mulher de meu pai, não quis que eu ficasse no hotel, e levou-me para sua casa, onde havia um quarto de hóspedes.

Durante os dias que ali me demorei fui carinhosamente tratado, e ainda hoje sou reconhecido aos favores do primo Linhares e de sua família, senhora e cinco senhoritas casadeiras.

Eu não fazia outra coisa todos os dias senão passear pela cidade, e à tarde, depois de jantar, o primo Linhares mandava colocar sete cadeiras no passeio, à porta da rua, e ele, a senhora, as senhoritas e eu sentavam-nos ao ar livre, e conversávamos até ao escurecer. Era muito divertido.

Numa das tardes em que estávamos assim, perambulando sobre os mais variados assuntos, surgiu de uma esquina, a cem passos do lugar em que nos achávamos, o vulto esguio de um rapaz moreno, de grandes bigodes, envolto numa capa espanhola e com a cabeça coberta por um grande chapéu desabado.

O primo Linhares, mal que o viu, ergueu-se e disse imperiosamente às senhoritas:

- Meninas, vão para dentro: vem ali o Flávio Antunes!...

As cinco senhoritas levantaram-se e desapareceram, correndo no interior da casa.

E o primo Linhares explicou-me:

- Aquele Flávio Antunes é um patife, um sedutor de senhoras casadas, um Don Juan!... Não consinto que as pequenas olhem para ele!... Não há nesta cidade sujeito mais desmoralizado! Nenhum pai de família honrado o recebe em casa!

E como o tal Flávio Antunes se aproximasse:

- Olhe para aquele todo! Veja! - o tipo completo do conquistador!...

E o transeunte, que era, efetivamente, um rapagão, passou fazendo ao primo Linhares um cumprimento, que não foi correspondido.



* * *

Um ano depois, o primo veio ao Rio de Janeiro. Fui recebê-lo na estação da Estrada de Ferro, e tratei logo de perguntar pela família.

- Estão todos bons. A minha pequena mais velha foi pedida à semana passada.

- Por quem?

- Por um excelente rapaz - o Flávio Antunes.

- Perdão... mas o Flávio Antunes não era...

- Era sim! mas que quer você? Com aquela coisa de mandar as meninas para dentro todas as vezes que ele passava lá por casa, fiz-lhe um extraordinário reclame! Todas elas gostavam dele, e ele gostou da mais velha!

- Ora! Hão de ser muito felizes.

- Sim, mesmo porque, melhor informado, me convenci de que a má reputação do pobre rapaz era unicamente devida àquela capa espanhola e aquele chapéu desabado!

- Deveras?

- Eram mais as nozes que as vozes, e se algumas falcatruas fez ele, coitado, foi em conseqüência do reclame que lhe fazíamos, eu e outros pais de família.



ANTÔNIO MARIA

(Antônio Maria Araújo de Morais)

Recife-PE =  1921-1964



O Mar

Banho de mar no recife era “banho salgado”, e só se tomava com ordem médica, das cinco às sete da manhã. Antes do sol.
As roupas de banho das mulheres começavam numa touca, seguindo-se um casaco-sunga escuro (com aplicações róseas ou azuis) até os joelhos e sapatos de borracha.
Não devia confessar, mas sou do tempo do “banho salgado”. Acordávamos com a noite fechada, entrávamos em nossas roupas de banho e partíamos. De carro, para a Boa Viagem. Em jejum. Ai de quem tomasse café e caísse no mar. Contavam-se casos de pessoas que envesgaram ou ficaram com a boca torta. Tinha que ser em jejum como o da comunhão. Nem água.
A família só descia do automóvel  depois que o chofer, pessoa de confiança, fizesse um reconhecimento da área e garantisse  que não havia ninguém (homem) ali por perto.
Na praia, a pessoa mais velha mandava  que todos fizesse o “pelo sinal” e tirava uma ave-maria, a que todos respondiam, encomendando a alma a Deus, no caso de afogamento ou congestão.
– Botaram algodão nos ouvidos?
– Botamos.
Davam-se as mãos, moços e crianças, entravam no mar, até a cintura.
– Um, dois três ... e já!
E mergulhavam agoniados, de mãos dadas, olhos, ouvidos, boca e nariz tapados.
Essas minhas lembranças vêm de 1928. Apenas 33 anos.  Mas o mar era uma novidade. Um desconhecido. Fazia-se cerimônia com ele.  Tinha-se medo dele.  Mar de 1928 era ainda o mar de Castro Alves. Soleníssimo: “Stamos em pleno mar!” Fazia medo. O mar de hoje é o de Caymmi. Abrandou. Tornou-se íntimo. Ninguém respeita.
É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar...
Daquele mar do Recife, ficou uma lembrança: o cheiro dos sargaços. A quem os teve, sargaços na infância, por mais que ande, por mais feliz que esteja, faltará alguma coisa.

18-11-1961




ADELMAR TAVARES
RECIFE-PE = 1888-1963

Do Banho

Manhã. Verão. Um sol rútilo, e quente.
Gritos das andorinhas no telhado.
Há no dia uma festa de noivado.
No ar, - um perfume que entontece a gente...

Do gabinete, no silêncio amado,
leio, e medito preguiçosamente.
Ouço cantar... És tu, meu lírio doente,
que vens do banho morno e perfumado.

Rumor de chita nova se quebrando...
Aromas de jasmins sobem revoltos,
enchendo a sala onde tu vais passando

e deixando uma música de avenas,
gorjeios claros de canários soltos,
frou-frou de cisnes sacudindo as pernas...



ADELMAR TAVARES
RECIFE-PE = 1888-1963

A Rede De Dormir

Para dormir numa rede,
cumpre logo prevenir,
não é chegar e deitar,
nem é deitar e dormir.

A rede é como o cavalo,
que para a gente montar,
tem que primeiro amansá-lo
para depois governar...

Tem de procurar o jeito
de deitar enviesado
pois não dando esse jeitinho
não está, em regra, deitado...

E em deitando, deixe sempre,
um certo espaço, porque
vem o seu anjo da guarda
deitar, dormir com você
.

ADÉLIA PRADO

Sem Enfeite Nenhum

A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?
Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.
Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.
Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.
 Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.
Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.
Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.
Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.
Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.
Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.
Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.
Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.
Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.
Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.
Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.
Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.
O Senhor te abençoe e te guarde, Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti, O Senhor te dê a Paz.
Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.
Era raiva não. Era marca de dor.

Texto publicado em "Prosa Reunida", Editora Siciliano - São Paulo, 1999, foi incluído por Ítalo Moriconi no livro "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 349.







CARLOS PENA FILHO
RECIFE-PE = 1920-1960

Chopp

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
 


Do livro: "Livro Geral", Ed. Póstuma, 2 ªed. 1999, PE

 


STANISLAW PONTE PRETA



- No Brasil, as coisas acontecem, mas depois, com um simples
desmentido, deixaram de acontecer.

- Antes só do que muito acompanhado.

- Ser imbecil é mais fácil.

- Está dando mais do que cará no brejo.

- Nos trens suburbanos não livram a cara nem de padre, que dirá mulher de minissaia.

- O mais perigoso é que já estão confundindo justa causa com calça justa.

- O Reino Unido não é tão unido assim como eles dizem, não.

- Mais monótono do que itinerário de elevador.

- Mais inútil do que um vice-presidente.

- Mais mole que bochecha de velha.

- A Polícia anda dizendo que prende um bandido de meia em meia hora, então a gente fica desconfiada que eles assaltem de 15 em 15 minutos.

- Ninguém se conforma de já ter sido.

- Quem desdenha quer comprar, quem disfarça está escondendo, mas quem desdenha e disfarça, não sabe o que está querendo.

- Mulher enigmática, às vezes é pouca gramática.

- Quando um amigo morre, leva um pouco da gente.

- Nem todo rico tem carro, nem todo ronco é pigarro, nem toda tosse é catarro, nem toda mulher eu agarro.

- Quem diz que futebol não tem lógica ou não entende de futebol ou não sabe o que é lógica.

- A diferença entre o religioso e o carola é que o primeiro ama a Deus, o segundo, teme.

- Pediatra sempre capricha na pronúncia quando anuncia sua especialidade, pra evitar mal-entendidos.

- Nem todo gordo é bom, muitos se fingem de bonzinhos porque sabem que correm menos.

- Tinha tal pavor de avião que se sentia mal só de ver uma aeromoça.

- Mulher e livro, emprestou, volta estragado.

- O sol nasce para todos, a sombra pra quem é mais esperto.


E para terminar:

- Da minha janela vejo o pátio de um colégio e quando a campainha toca para o intervalo das aulas eu paro de trabalhar e fico olhando, como se estivesse no recreio também.

- O importante é não deixar nunca que o menino morra completamente dentro da gente. Caso contrário, ficamos velhos mais depressa. Dizem que é por isso que os chineses, de incontestável sabedoria, conservam o hábito de soltar papagaio (ou pipa, se preferirem) mesmo depois de adultos. Não sei se é verdade, nunca fui chinês.

(Sérgio Porto)



ANTÔNIO PRATA
SÃO PAULO-SP, 1977


O politicamente incorreto está na moda nos meios de comunicação. (Fora deles, não, pois não pode estar na moda o que nunca caiu em desuso). Colunistas, jornalistas e blogueiros enchem o peito e, como se fossem os paladinos da liberdade de expressão, desancam os movimentos sociais, o feminismo, maio de 68, os quilombolas, os índios e tudo mais que tiver um ar de correção política ou cheire a idéias de esquerda. Tá legal, eu aceito os argumentos, mas não levantem as vozes tanto assim: não há ousadia nenhuma em ser politicamente incorreto no Brasil; aqui, a realidade já o é.
Imagine uma escola religiosa na Dinamarca. Flores nas janelas, cheiro de lavanda no ar, vinte alunos loiros, com cristo no coração e leite A correndo pelas veias, respondendo a uma chamada oral sobre o Pequeno Príncipe. Ali, o garoto que se levantar e cuspir no chão será ousado. Mostrará que a despeito do aroma de lavanda, o ser humano é áspero, é contraditório, é violento. Quando a realidade fica muito Saint-Exupéry, é importante que surjam uns Sex Pistols para equilibrar. Agora, cuspir no chão de uma escola municipal em São Paulo, diante da professora assustada que não consegue fazer com que os alunos, analfabetos aos dez anos, fiquem quietos, não tem nenhuma valentia. Quando a realidade da polis é o caos, o som e a fúria são a correção política.
O sarcasmo dirigido aos intelectuais de esquerda seria audaz e iconoclasta caso o Brasil tivesse vivido de 37 a 45 e de 64 a 85 sob as ditaduras de Antonio Candido e Paulo Freire. Se antropólogos de pochete e índios com camisa do Flamengo estivessem ameaçando o agronegócio, devastando lavouras de soja para plantar urucum e cabaça para fazer berimbau. Se durante o carnaval as feministas pusessem no lugar da Globeleza drops de filosofia com Marilena Chauí e Susan Sontag. Se a guitarra elétrica fosse banida da MPB pela banda de pífanos de Caruaru. Do jeito que as coisas são, contudo, o neoconservadorismo faz sucesso não porque choca a burguesia, ao cuspir no solo de onde brotam seus nobres valores, mas porque assina embaixo da barbárie vigente – e ri dela.
Nos EUA, o politicamente correto está tão entranhado nas relações que eles até o chamam pelo apelido: PC. Aqui, as duas letras ainda nos remetem ao tesoureiro do Collor, o ex-presidente que caiu após escândalos de corrupção e apareceu na capa dos jornais essa semana depois de ser eleito para chefiar uma comissão no senado. Enquanto não substituirmos um PC pelo outro, em nosso imaginário e nas manchetes, quem quiser cuspir no chão pode continuar cuspindo, mas deixe de lado esse tom varonil de quem está pegando touro à unha, quando não faz mais do que chutar cachorro morto.






BARÃO DE ITARARÉ (*)

 Carta Branca

Pobre de mim! que, em vão, ansioso, espero
Notícias de meu bem, que está distante.
O meu amor aumenta a cada instante
E cada vez me torno mais sincero

Por ser assim, bondoso e tolerante,
Assim me paga o quanto bem lhe quero.
Talvez se eu fosse um pouco mais severo,
Seria ela mais meiga, mais constante.

E há tanta moça aqui nesta cidade...
E eu tão triste, curtindo esta saudade,
Que o pranto dos meus olhos não se estanca.

Se a desalmada, ao menos, me mandasse
Uma cartinha, p'ra secar-me a face...
Se me mandasse, ao menos, carta branca...


(*) APARÍCIO TYORELLY   Gaúcho de SÃO LEOPOLDO   1895 / 1971
 Poema publicado sob o pseudônimo de Apporelly



ADELMAR TAVARES
RECIFE-PE   1888-1963

Corpo E Sombra
Mantida A Ortografia Original


“O corpo que hoje viste, ao fim do dia,
Seguir para uma cova que o esperava
Oitenta annos viveu... E não cansava!
Quem cansou foi a sombra que o seguia...

Oitenta annos em sua companhia,
Arrastada por terra como escrava!
Só quando elle no escuro repousava,
Ella no escuro repousar podia.

Oitenta annos! Liberta, finalmente,
Agora que o meteram n’um jazigo,
Sae lésta e leve, a espairecer contente...

E parece que em jubilo profundo,
Diz: - Emfim, só! Depois de haver comtigo
Errado, quase um seculo no mundo!...”




BERTOLD BRECHT
ALEMANHA,  1898-1956



Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não morressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.






ANTÔNIO PRATA
SÃO PAULO-SP   1977




Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinqüenta anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento e cinqüenta anos, mas tudo bem).
No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o proletariado atende por Betão – é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando resolver aí quinhentos anos de história.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar “amigos” do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.
– Ô Betão, traz mais uma pra a gente – eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio intelectuais, meio de esquerda, freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.
O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?).
– Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?





HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA   1886 / 1934
A Queda De Abraão


Abraão Machalon, filho de Samuel Machalon, era um tipo legítimo da sua raça. O povo de Israel jamais tivera varão mais apegado às tradições; e foi por isso, talvez, que Jeová, na sua alta sabedoria, que lhe deu por esposa a Raquel, filha mais velha de Jacó Benoliel.
No dia da união, após a solenidade, resolveu o casal Machalon festejar esse acontecimento indo ao Municipal, onde se realizava, naquela noite, um espetáculo da Companhia Lírica.
Na bilheteria, Abraão indagou:
- Quanto custa uma cadeira, cavalheiro?
- Vinte mil réis, em baixo, na platéia, - informou, seco, o bilheteiro.
Abraão pensou um instante, e insistiu:
- Cada cadeira dá para duas pessoas?
- Não, senhor; cada pessoa ocupa uma cadeira.
- E não há lugares mais baratos?
- Há, como não? Nas galerias, lá em cima. Cada galeria custa cinco mil réis.
Abraão meditou um instante, lembrando-se que não se casaria duas vezes, e que poderia, perfeitamente, fazer aquela loucura, gastando dez mil réis. Comprou, assim, duas galerias, e, meia hora depois, estava em cima, no "paraíso" do teatro, aplaudindo, ao lado de Raquel, a voz poderosa do tenor que cantava a "Tosca".
Pouco a pouco, foi o honrado descendente dos patriarcas tomando gosto pelo drama cantado. Aplaudia com prazer, com alma, com entusiasmo. E na sua exaltação, dobrava-se todo para a frente, em termo de virar pelo parapeito, e tombar lá em baixo, na platéia, espatifando-se no chão.
Olhos pregados na cena, Raquel sorria, beatificante. E sorria, deliciada, quando o marido, a aplaudir Cavaradossi no fim do segundo ato, se entusiasmou tanto, que pendeu para a frente, escapulindo da galeria, para rebentar o crânio lá embaixo, nas cadeiras. Por uma felicidade, porém, enganchou os pés nos frisos de um camarote de segunda ordem, ficando ali pendurado, a cabeça para baixo, o paletó cobrindo o pescoço.
O rebuliço no teatro foi enorme. Correrias, atropelos, gritos, palavras de terror. E no meio de tudo isso, só se ouvia a voz de Raquel, debruçada no parapeito:
- Abraão?... Abraão?... Não caias, Abraão!
E para animá-lo a salvar-se:
- Lá em baixo custa vinte mil réis, Abraão!





CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

ITABIRA-MG   1902-1987



A Verdade

 A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam verdade...
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
Seu capricho,
sua ilusão, 
sua miopia.




AUGUSTO DOS ANJOS
CRUZ DO ESPÍRITO SANTO-PB = 1884-1914

Hino À Dor


Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam..

És suprema! Os meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!

Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tacto
Prendo a orquestra de chamas que executas...

E, assim, sem convulsão que me alvorece,
Minha maior ventura é estar de posse
De tuas claridades absolutas!



VINÍCIUS DE MORAES
RIO DE JANEIRO-RJ   1913-1980

Os Culpados De Tudo
Jornal do Brasil, 31/12/1969


 Na hora que corre, quase todas as mulheres estão fazendo regime para emagrecer (e o advérbio representa aqui algumas poucas e honrosas exceções). O ideal da forma feminina passou a ser o esqueleto acolchoado, ma non troppo, de maneira que certos ossos fundamentais aos últimos padrões da moda, como a coluna vertebral, os ilíacos, as clavículas, as rótulas e os fêmures, fiquem francamente à mostra. E obedientes a essa nova extravagância do sexo outrora considerado fraco, os especialistas, transformados em mágicos, formulam esquemas dietéticos de toda sorte: macrobióticos, hipocalóricos, astronáuticos, líquidos, o diabo. Os consultórios vivem repletos, o faturamento é altíssimo, as mulheres se sentem divinas-maravilhosas quando começam a ranger nas dobradiças. Tirante conversa de futebol e análise de grupo, é o tópico sobre que mais se fala atualmente. Fulana perdeu 15 quilos em um mês! Sicrana, imaginem só, está reduzindo um quilo por dia com a dieta líquida: que bárbaro! Viram Beltraninha depois que saiu da clínica? Como é que pode!… E os homens – eu digo: os homens! – vêem, compungidos, evaporar-se aquelas partes do corpo da mulher consideradas, desde séculos, como as mais responsáveis pela preservação da espécie.
– Ah, que saudade das mulheres de Rubens e Renoir… – suspiram os mais antropófagos.
– Eu, hein… – contestam os costureiros. – Botticelli é que era pra frente, meu filho – um louco genial, previu tudo, com aquela Primavera alucinante, magérrima! Quem gosta de gordura é detergente. A ordem do dia, queridinho, é Biafra, ouviu? Biafra!
E a carne das mulheres some, as faces se encovam, os seios diminuem, as coxas se alongam, as pontas pélvicas protuberam. Quase que as moças poderiam voltar agora à velha fórmula cediça:
– Aperte aqui estes ossos!
Meu caro amigo José Carlos Cabral de Almeida, conhecido endocrinologista – eu diria mesmo, geômetra – de nossa desvairada praça, está mais que ninguém por dentro deste novo tipo de neurose. Passa ele grande parte do seu tempo útil transformando círculos em ângulos, curvas em retas, esferas em planos, peças de rolamento em cremalheiras. Entram – ou melhor, rolam – diariamente pelo seu consultório adentro, mulheres-pipas que ele (depois de debruçar-se sobre estranhos formulários e equacionar carboidratos, proteínas e matérias graxas) devolve à sociedade transformadas em verdadeiras Verinhas Barreto Leite, em autênticas Veruschkas, capazes de sair dali direto para Paris como manequim-vedete. E elas que não arriscavam mais cruzar as pernas numa festa, sob pena de mostrar um crivo de celulite coxa acima, passam a usar minissaias e biquínis, como bem observa Paulinho Garcez, que são pouco mais que band-aids. E o moral com que elas ficam? Resolvem qualquer problema de cálculo integral, fácil.
Mas esqueci de dizer uma coisa: meu amigo José Carlos, além de endocrinologista e emagrecedor contumaz de mulheres (e homens, eventualmente, como no meu caso), é um grande pesquisador dos segredos da genética, assunto que o leva, vira e mexe, a Londres, para cursos e conferências. Eu confesso que a genética é um assunto que me fascina porque suas leis, que também são azares, formulam-se à base de um grande e poético mistério. A palavra cromossomo, por exemplo: para mim é a própria poesia. De maneira que, lidando com a genética e as glândulas do seu semelhante, nada mais natural que José Carlos Cabral de Almeida viva em plena faixa das mulheres superneuróticas. Como uma amiga sua, “uma neurótica divina”, segundo ele próprio diz, e sobre quem me contou o seguinte:
– Pois imagine que ela encontrou um homem extraordinário, com todos os ingredientes, hoje em dia tão raros, para fazer qualquer mulher feliz: rico, inteligente, boa pinta, finíssimo, ótimo caráter – enfim, um bilhete premiado. Começaram a sair juntos e aí eu a perdi por um tempo de vista. Muito bem: meses depois ela me procurou para uma consulta e eu lhe perguntei como ia o romance.
– Acabei – respondeu a “louca maravilhosa”.
– Acabou? Mas você está doida, criatura? Pois você não vivia rezando por um homem exatamente como o que você acabou de chutar?
– É… – fez ela. – Mas é que eu estava tão feliz, mas tão feliz, e tudo correndo tão bem que, de repente, me deu assim uma agonia, e eu resolvi acabar porque já não sabia mais se aquela felicidade toda era felicidade mesmo, ou era neurose…
Essa história me encheu as medidas, porque ela é bem um conto dos nossos tempos, em que os valores se invertem do dia para a noite, e as pessoas ficam realmente sem saber onde pisam e a quantas andam. Aliás, em matéria de histórias, meu amigo José Carlos contou-me outra de sua “neurótica divina” que, essa, é antológica.
Disse-me ele que durante a chamada Guerra dos Seis Dias, entre Israel e RAU, foi procurado por essa mesma amiga e cliente, e, conversa vai, conversa vem, ela começou a manifestar um anti-semitismo tão fora de seus moldes que ele, sabendo-a uma mulher inteligente e totalmente despida de preconceitos, os raciais e os outros, mostrou-lhe sua estranheza: tanto mais quanto toda sua esfera social só podia ser pró-Israel.
– Judeus… – indignou-se ela. – Tomara que morram, todos!
– Eu juro que não estou entendendo nada – disse-lhe José Carlos. – Logo você, uma mulher ultra por dentro, e ainda mais se lixando para política…
– É uma raça que precisa ser exterminada. Hitler não conseguiu, mas eu tenho fé em Deus que Nasser há de chegar lá! Eles estão aí para fundir a cuca da humanidade.
– Mas…
– É isso mesmo. Por que é que está toda gente de cuca fundida, procurando analista e engordando à toa, e aí vai para o dietista e emagrece uma barbaridade, e aí come sem parar e engorda tudo de novo – me diga? Quem são os responsáveis pela neurose de todo mundo, e a minha em particular?
– Francamente, não vejo…
– Pois eu lhe digo: são três judeus.
– …
– Jesus Cristo, Freud e Marx.
– ….
– É isso mesmo. Pau neles!



ADRIANO ESPÍNOLA
FORTALEZA-CE   1952

O Jangadeiro


Jangadas amarelas, azuis, brancas,
logo invadem o verde mar bravio,
o mesmo que Iracema, em arrepio,
sentiu banhar de sonho as suas ancas.
Que importa a lenda, ao longe, na história,
se elas cruzam, ligeiras, nesse instante,
o horizonte esticado da memória,
tornando o que se vê mito incessante?
As velas vão e voltam, incontidas,
sobre as ondas (do tempo). O jangadeiro
repete antigos gestos de outras vidas
feitas de sal e sonho verdadeiro.
Qual Ulisses, buscando, repentino,
a sua ilha, o seu rosto e o seu destino.



ADELMAR TAVARES
RECIFE-PE = 1888-1963


 Francisco, Meu Pai


Como que o vejo... o chapelão caído
Sobre a cabeça branca de algodão...
Buscando o campo, - o dia mal nascido,
Voltando à casa, o dia em escuridão.

Lavrador, fez da terra o ideal querido.
“Meu filho, a terra é que nos dá o pão”,
Dizia-me. E cavava comovido,
A várzea aberta para a plantação...

Mas um dia, eu, pequeno, vi, cavando,
Sete palmos de campo, soluçando,
Uns homens rudes ... Tempo que já vai!

“Francisco, adeus”! Diziam repetindo.
Meu pai desceu de branco... Ia dormindo
Fechou-se a terra... E não vi mais meu pai!






LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936

O Estranho Procedimento De Dona Dolores

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo — pai, mãe, filho e filha — e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:
— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.
O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.
— O que é isso, Dolores?
— Tá doida, mãe?
Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.
— Acho que a mamãe pirou de vez.
— Brincadeira dela…
A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.
— Adivinhem o que tem de sobremesa?
Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.
— Acertaram! — exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. — Gelatina Quero Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.
O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentada à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:
— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!
Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.
— A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.
— Dolores…
Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.
— Eles vão gostar.
O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.
— Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo.
— Pare com isso, Dolores.
Mas dona Dolores não ouvia.
Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa, mostrando para uma platéia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.
— Ela está nervosa, é isso.
— Claro. É uma fase. Passa logo.
— É melhor nem chamar a atenção dela.
— Isso. É nervos.
Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. Não parava de sorrir para o seu público imaginário. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:
— Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.
Ou:
— Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.
Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.
— Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém-desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?
— O quê?
— Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.
— Dolores…
Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:
— Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!
Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.
— Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?
— Mãe, eu…
— Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.
O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmara que só ela via, enquanto passava creme no rosto.
— Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.
Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmara.
— Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer…




MAURO MOTA
RECIFE-PE = 1911-1984

Assombrações Do Recife Velho


Cadeiras balançam
sem gente, sozinhas.

Fantasmas, rumores
na cama, estilhaços.

Apagam-se os lampiões
de bicos de gás
e as lamparinas
de azeite no quarto.
As rezas das tias,
velas no oratório.
A noite comprida
não acaba mais.

Cavalos, boleeiros,
de fraque e cartola
nas ruas vazias.
A moça encantada
no Encanta-Moça.

O Sobrado-Grande
com assombração.

A ronda do Diabo
na Cruz do Patrão
com fogo nos chifres,
correndo no istmo
de Olinda ao Recife.

Canoas sem remo
no Capibaribe.
Uivos dos cachorros
no fundo dos sítios
e dos lobizomens
pegando as mulheres
na Volta ao Mundo.






MARTINS FONTES
SANTOS-SP   1884-1937

Povo


O povo és tu, sou eu: nós somos povo.
E bendigamos a perfeita graça
De pertencer à multidão, à massa,
Diante da qual me inclino e me comovo.

Dela é que há de surgir o mundo novo.
E partícula dessa populaça,
Sinto que a prepotência me espedaça,
Mas do posto em que estou não me demovo.

Esqueço a Torre de Marfim da lenda.
E, a clarinar, me envolvo na contenda,
Ressangrando às pedradas e aos apodos.

Nada de caridade ou de piedade.
Mas de união ou solidariedade,
Sendo todos por um, sendo um por todos.



EDGAR ALLAN POE
BOSTON-EUA = 1809-1849

Sombra
"Na verdade, embora eu caminhe através do vale da Sombra..."
SALMO de David.


    Vós que me ledes, por certo estais entre os vivos, mas eu que escrevo, terei partido há muito para a região das sombras. Porque de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão, antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide, e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados, com estilete de ferro.
    O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na terra. Pois muitos prodígios e sinais se haviam produzido e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se, não somente no orbe físico da terra, mas nas almas, imaginações e meditações da humanidade.
    Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes de nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de bronze, de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o pressentimento e a lembrança do Flagelo não podiam ser assim excluídos. Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar precisa conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade, e, sobretudo, aquele terrível estado de existência, que as pessoas nervosas experimentam, quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimiam nossos ombros os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas as coisas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro, que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava, sobre a redonda mesa de ébano, a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo, que era histérico. E cantávamos as canções de Anacreonte, que são doidas, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido ao comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria, salvo seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão, e, mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Telos.  Mas, pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvaecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções , se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua, quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto de um homem: mas não era a sombra de um homem, nem a sombra de um Deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E tremendo, um instante, entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente, sobre a superfície da porta de ébano.  Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de Deus, de deus da Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável . Os pés do jovem Zoilo amortalhado encontravam-se, se bem me lembro, na porta na qual a sombra repousava.  Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra, no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos, e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e seu lugar de nascimento. E a sombra respondeu:
    — Eu sou a sombra e minha morada está perto das Catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais, que orlam o sujo canal de Caronte.
E então, todos os sete erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era o de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando nas suas inflexões, de silaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos, que a morte ceifara.


*Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado
Extraído de Poesia e Prosa, da Ediouro








BERILO  WANDERLEY


NATAL-RN   1934-1979

  
Canto Último


E um dia, quando eu nada for,
quando o brilho dos meus olhos, vazando, se
diluir na terra,
e os vermes corromperem meus lamentos
e prostituírem meus melhores pensamentos;
nesse dia, quero que digas
que ao menos para ti eu fui bom.
E que meus olhos sempre te ofertavam cantigas
quando, nas tardes, vinhas vaidosa dos pecados
que me trazias.
E beijavas minhas lembranças boas e más, em
minha fronte.
E diluías teu sorriso em minha boca.
Depois, teu corpo brotava dos meus dedos,
e respiravas, então profundamente...

Dize, e minha sombra não se abrirá em cruz nas
estradas nuas.
Dormirá tranquila, apascentando os seus
próprios pecados.
Dize, e o ermo do meu chão,
onde minha palavra se tornará pedra
e meu riso se fará lodo,
será menos ermo e será menos chão.





MEDEIROS E ALBUQUERQUE
RECIFE-PE = 1867-1934

Quando Eu For Doido


Eu sinto que a Razão em mim, ás vezes,
como um ébrio sem forças, cambaleia,
e, nas trevas da Insânia, que tacteia,
busca e não acha a luz.

E minh'alma confrange-se tremente,
como creança lívida e assustada,
porque lhe falta a vastidão rasgada
dos amplos céos azujes!

E eu vos quero pedir, a vós, carrascos,
que heis de — quando chegar o triste dia
querer me dar a lúgubre enxovia
de um hospício qualquer,

que me deixeis, ao menos, nesse transe,
afinal, a suprema liberdade
de, em pleno sol, em plena claridade,
como um doido — morrer!





CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ITABIRA-MG  =  1902 / 1987

Poema Culinário


No croquete de galinha,
A cebola batidinha
Com duas folhas de louro
Vale mais do que um tesouro.
Também dois dentes de alho
Nunca serão espantalho.
(Ao contrário) E três tomates,
Em vez de causar dislates,
Sem peles e sem sementes,
São ajudas pertinentes
Ao lado do sal, da salsa,
(A receita nunca é falsa)
Todos boiam na manteiga
De natural doce e meiga.
E para maior deleite,
Um copo e meio de leite.
Ah, me esqueci: três ovos
Bem graúdos e bem novos
Junto à farinha de rosca
(Espante-se logo a mosca)
Mais a pitada de óleo,
Sem se manchar o linóleo,
E mais farinha de trigo...
Ai, meu Deus! deixa comigo.




RECIFE-PE = 1918–1942


Via-Láctea


Abre tua janela que por ela entrará a Via - Láctea.
E se não tiveres uma janela para te debruçares,
Adormece que verás como ela se transformará
Em flores e em pássaros no teu sonho.
Para mim ela é um número incontável de olhos
Que me despem.
Para mim ela é como punhal envenenado
Ou espada de fogo que me trespassa.
Eu não vê-la-ei jamais,
Pois meus olhos já estão cegos para a visão,
Porque meus olhos são duas tristes paisagens
Na moldura ridícula de meu rosto.





LUIS FERNANDO VERISSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936

Barbaridades



Sou solidário com o ganso. Também acho uma barbaridade alimentarem o pobre bicho à força para hipertrofiar seu fígado e produzir o (mmmm) “foie gras”. Desculpe, retiro o “mmmm”. É uma barbaridade.
Mas, se vamos reprovar o que fazem com o ganso, devemos lembrar também o que fazem com outros animais que nos dão de comer. Os métodos para abater bois nos matadouros não são exatamente humanitários.
E o que dizer dos bois mantidos em cativeiro a vida toda, só comendo e crescendo sem sair do lugar, sem ter qualquer vida social, sem conhecer o mundo? A carne excepcionalmente tenra que produzem justifica o sacrifício, mas vá dizer isso ao boi.
E os galetos, galinhas assassinadas antes de chegar à puberdade sem que nenhuma voz se erga contra o infanticídio? E as poedeiras, também condenadas a viver confinadas até morrer, só produzindo ovos, ovos, ovos, sua única razão de ser? Camus escolheu o mito de Sísifo, cuja punição por desafiar os deuses foi passar a vida inteira empurrando uma grande pedra para cima de um morro, só para vê-la rolar morro abaixo quando chegava ao topo, como uma representação do absurdo da existência.
Descontado o ridículo de usar uma galinha poedeira no lugar de Sísifo (perdão, Camus), sua sina é a mesma. Uma vida reduzida a um ovo depois do outro depois do outro. Nenhuma variedade, nenhuma diversão, nenhuma vida sexual, nenhum sentido. Nada. Onde estão os protestos contra a existência absurda das galinhas poedeiras?
Os hortifrutigranjeiros também são coisas vivas, ou eram até chegar no nosso prato. Quem colhe uma fruta ou um vegetal está interrompendo uma vida. Uma colheita, qualquer colheita, não deixa de ser um massacre.
Especula-se sobre como seria se as plantas gritassem e gemessem como gente, na perspectiva de serem arrancadas do seu chão para virar comida. E se as árvores dissessem “Ai, ai, ai” ao som de uma serra elétrica, ou uivassem de dor ao serem cortadas? Imagine uma grande plantação de trigo ou soja rebelando-se e gritando “Não! Não!” à aproximação das colheitadeiras.
Não à maldade que fazem com o ganso para podermos comer seu fígado gordo. Mas, pensando bem, comer qualquer coisa — salvo, talvez, yogurte natural — é uma barbaridade.







GOUVEIA MARINHO
LUIZ TAVARES DE GOUVEIA MARINHO
GOIANA-PE  =  1901 / 1983
                                                               

O Sacristão



    Era um homem escuro e atarracado. Nariz chato, beiços de lombo. Sacristão, não tinha, contudo, voz de falsete, como o que vi em Água Preta, ajudando a missa de um frade holandês de barbas intensas. Félix falava grosso.
    Era incurável apreciador do jogo do bicho. Ao padre Silvino Guedes, vigário da paróquia, costumava dizer que o “bicho” era o pão dos pobres. Mas fosse ele, com a mulher e o rancho de meninos que provia, nutrir-se desse pão!
    Raro acertava, apesar da fezinha diária que fazia.
    A juventude local estava literalmente empolgada com a pregação de Plínio Salgado. O entusiasmo pelo integralismo a todos contagiava. Não somente aos moços, senão também à gente provecta. Até o sereno e austero juiz de direito da comarca dera-se ao desfrute de cerrar fileiras, vestindo camisa verde, numa passeata levada a efeito no Recife.
Anauê! Esclamava-se, erguendo o braço direito e espalmando a mão. E não era outra a saudação usual entre os amigos.
    A Rapaziada perdia a cabeça. Se isso não aconteceu, se o Brasil não se tornou de vez um vasto hospital... de doidos – um vasto manicômio, foi graças àquele golpe fulminante da capoeiragem política de Vargas.
    Só Félix não se entusiasmava, ao contrário... sempre frio, logo entrou a embirrar com os camisas verdes.
    Intrigado, o vigário da freguesia, o qual já não era o Padre Silvino, porém o juvenil Padre José Távora, simpatizante com o credo verde-oliva, perguntou-lhe, um dia, a razão de uma tal ojeriza. E dele ouviu:
    - Vosmecê não tá vendo, seu vigário? Querem acabar com o jogo do bicho.
   - Como assim, homem de Deus?!, admirou-se o sacerdote.

   - O nome tá dizendo: intrega a lista. 




JOSÉ ALMINO PINHEIRO
CRATO-CE

OS SINOS DOBRARAM NO CRATO

A torre da Igreja São Vicente Ferrer do Crato sempre foi um dos lugares que me fascinavam, com três belos sinos, grandes, afinados, importados de não sei onde. Eu era um dos coroinhas da igreja. A escala das nossas obrigações, escrita pelo Padre Frederico, era organizada de tal forma que era compreensível para todos. Estavam lá discriminadas as funções, as horas e os dias da semana que cada um deveria exercer; previa inclusive os coroinhas reservas, caso alguém faltasse. Para as Missas da madrugada (6 horas da manhã) os coroinhas precisavam da autorização dos pais, não podia perder aula. Algumas das obrigações: tocar os sinos, ajudar na missa, balançar o turíbulo, carregar o incenso, segurar a patena na hora da comunhão, nos batizados ajudar no andamento da cerimônia e as vezes anotando as informações para a certidão de batismo, ajudar o sacristão a fechar a igreja, etc.
Na torre o toque de chamada para as missas era simples: três coroinhas executavam a operação de puxar as cordas para mover os sinos, os badalos ficavam soltos, quanto maior o impulso maior a pancada do badalo na borda interna do sino e em consequência maior a intensidade do som. Para avisar os fieis da hora da missa, eram necessários três toques de 2 minutos, o primeiro às 17:30h, o segundo às 17:45h com os 3 sinos tocando simultaneamente, no terceiro toque às 18:00h, apenas tocava o sino grande. No último toque os fieis já deviam estar dentro da igreja, o padre já no altar, esperava o último badalar do sino para então começar a cerimônia. Para nossa alegria o padre não admitia atrasos, todos os dias os coroinhas levavam para a torre um grande despertador com marcas de tinta vermelha no mostrador indicando o momento dos toques. Por pura molecagem, às vezes antecipávamos em alguns minutos o último toque, só para ver os fieis correndo para chegar na igreja a tempo e também observar a impaciência do padre em terminar de vestir os paramentos para depois, já a postos no altar, repreender em voz alta os que chegavam atrasados. Confesso que nos dava uma estranha sensação de poder, por alguns minutos, o início da celebração da Missa dependendo da vontade de alguns coroinhas.
Havia bastante liberdade no universo dos coroinhas da Igreja São Vicente; para nós um dos poucos tabus era o toque fúnebre. Esse dever de anunciar a morte e o respectivo enterro do cristão não fazia parte dos nossos pensamentos, era coisa muito séria, sobrenatural. Mas no dia da morte de uma viúva que morava no alto da matança, era preciso tocar o aviso fúnebre. O principal critério de consideração do padre Frederico não era o da posição social e sim o comportamento exemplar que cada cristão deveria ter. A defunta tinha ficado viúva muito nova e para criar os cinco filhos teve que passar a vida toda trabalhando como costureira, e ainda arranjava tempo para ser boa paroquiana, portanto merecia a atenção da Igreja. Como o Sr. João, sacristão e tocador oficial e conhecedor dos toques ficou enfermo, o padre teve que improvisar e convocou três coroinhas que estavam por perto para cumprir a missão. Para nós, as vítimas, o padre preparou em uma folha de papel uma espécie de partitura com as explicações de como os sinos deveriam tocar. Era o toque fúnebre feminino, e, se não me engano, consistia em sequências regulares de toque duplos, começando do sino menor para o maior.

Na torre os sinos ficavam em andares diferentes, o menor no andar mais alto, o toque era feito com o sino imóvel com a batida do badalo puxado por uma curta corda, de forma que mal dava para os coroinhas conversarem entre si. Era um momento pesaroso e monótono. Depois de algum tempo, para quebrar a monotonia começamos a exercitar, sem saber, alguns fundamentos da física: a prática da balística e queda livre dos corpos, jogando lá de cima da torre mísseis em direção a incautos transeuntes que ousavam passar sob as janelas da torre. Esgotadas as munições ao nosso redor, era necessário procurá-las em outros lugares da torre. As munições consistiam em cocô ressecado de pombos, andorinhas e provavelmente de morcegos. No entusiasmo dessa batalha a partitura do padre ficou em segundo plano, pois não mais se respeitou as sequências nem o tempo das batidas dos sinos, no afã de encontrar munição, cada um tocava seu sino do jeito que dava, era uma espécie de novo e animado batuque fúnebre. O toque diferente, chamou a atenção dos paroquianos que ficaram curiosos em saber que autoridade tão importante tinha morrido para merecer tal toque. Talvez a mãe de algum padre ou mesmo um bispo alemão. O enterro da viúva foi um sucesso. Uma multidão acompanhou o enterro, muitos queriam saber quem era o homenageado daquele toque especial. De cima da torre, pelas frestas das janelas observamos quando passou o enterro, liderando o cortejo estava impassível o padre Frederico. Ao passar pela igreja rumo ao cemitério, tive a sensação que o padre deu uma forte olhadela para a torre, e por precaução e em legítima defesa das nossas orelhas, passamos alguns dias sem aparecer na igreja. 




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