sábado, 11 de maio de 2013

CRÔNICA = J. Carino


J. CARINO
RIO DE JANEIRO-RJ  =  1945


Sangue De Cristo

 


É gordinha, mas não rotunda. Tem as bochechas rosadas das avós amorosas. A voz meiga não trai a crueldade que lhe vai n'alma, herdada em carne e sangue da criação na família burguesa do interior.
Com voz melíflua que quase nunca se altera, descompõe a empregadinha negra com vontade, com gana, como que pensando: "Ah, se a escravidão voltasse!..."
Nesses momentos, rememora a vida de moçoila rica para os padrões de sua cidade. Acostumou-se a mandar, a ter serviçais - resquício de um passado tão lamentado porque se foi.
Era bonita e mimada. E seguiu a caravana: casou-se com aquele médico recém-formado, de futuro promissor... se quisesse se beneficiar do mandonismo do sogro, que terminaria fazendo do cunhado um governador.

Mas, não. Acabou sendo mulher de médico. Mulher, não; esposa. Esposa caseira, recatada e parideira. Um, dois, três... sete filhos foram vindo, tirando-lhe a formosura e limitando-lhe o espírito já acanhado pela formação só como professorinha interiorana.
Hoje, entrada nos oitenta, restam-lhe as lembranças e a fatal vocação para beata. Hoje reza. Reza e mete o aguilhão que humilha em faxineiras, balconistas e outros seres desprezíveis que lhe cruzam o caminho, representantes inconscientes dos abjetos seres inferiores saídos da senzala.
Sai, agora, em seu passinho miúdo, para ir à missa. Sai propositadamente atrasada, com o olhar vivaz reparando em todas as mazelas do mundo, em todos os pecados mal escondidos por saias tão curtas, meu Deus!
Chega à igreja e percorre, de nariz em pé, a nave apinhada. Goza sua majestade, sua condição de velha, chantageando com o olhar os que estão sentados, até que alguém perceba o desaforo que é não lhe dar o lugar.
Hóstia santa, consagrada, corpo de Cristo; vinho abençoado, sangue do nosso salvador...
Passo miúdo, olhar brilhante, murmura todas as respostas do ritual. Não sabe, não pensa, não reflete, só repete, mastigando palavras há muito decoradas, no automatismo de uma vida inteira mergulhada em ladainhas.
Sem agradecer ao jovem que não fez mais que a obrigação de lhe ceder o lugar, senta e reza. Vez por outra, desafia o reumatismo e amassa contra o chão os joelhos calosos de tantas genuflexões.
Hoje esta igreja parece tão menos familiar. A pele de cera e o olhar baço das imagens parecem animados do sopro da vida. O incensório parece trazer, além do perfume, tão impregnado em suas narinas, uma bruma acolhedora, nevoeiro duma cidade fantasma para além do tempo e do espaço.

Hóstia santa, consagrada, corpo de Cristo; vinho abençoado, sangue do nosso salvador...
Tudo está estranho. Os sons soam amortecidos; as luzes vão se apagando, as cores esmaecendo...
Corpo de Cristo, sangue de cristo...

De repente, um lembrar total sem vontade: o marido velho, as filhas e filhos, netos, bisnetos, comidas, vida boa de mocinha mandona e paparicada... a casa, os pecados cometidos só em pensamento...
Hóstia santa, consagrada, vinho abençoado...
A mente se afoga num torpor quase gostoso. Uma dormência nos braços, uma dorzinha leve que cresce e vira dorzona muito pior que a das enxaquecas reais e a das fingidas.
Tudo gira, gira, ela cai num torvelinho fantástico.
Um baque. A surpresa (coitada da velhinha!).
Da cabeça, fendida contra o degrau do altar, corre sangue.
Boquiaberto, colhido pela surpresa da vida (ou da morte) real, o jovem padre faz tombar o sagrado cálice. A vermelhidão escura toda se mistura.
Sangue de cristo...



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