CLÁUDIO AGUIAR
PORANGA-CE = 1944
O Último Combate
Era inacreditável, mas o meu amigo tenente Ribeiro estava
morto sobre um banco da praça. Como poderia um ex-combatente, detentor de
medalhas de bravura nos campos de batalha de Itália, terminar assim? A única
coisa que podia fazer era reconhecer o morto, avisar aos familiares e prestar
testemunho à autoridade que viesse fazer o levantamento do cadáver.
Ao vê-lo ali com os olhos abertos, congelados num assombro,
a pele franzida pelo inusitado impulso do último gesto, uma linha de sangue
jorrada de sua cabeça sobre a pedra quente, não me foi difícil imaginá-lo vivo,
agitado, contando suas aventuras. Suas palavras, em turbilhão, ressoando numa
voz forte mas monocórdica, tinham algo de saudosismo de um tempo que seria
melhor esquecer, ainda que a maioria, não sei por que motivo, insista em
lembrar: as misérias das guerras. É muito estranho que entre dois
bandos que se matam numa guerra, no final das contas, o
vencedor tem ao seu lado as benesses divinas, como se a vitória e o poder
unissem-se em nome do bem, enquanto a derrota e o poder aliam-se para armar desculpas mentirosas
capazes de transformar fracassos em bandeiras levantadas por inocentes.
Nos seus relatos havia também um tom de veracidade e
frescor, pois revelava detalhes sobre pessoas, lugares e coisas sem perder de
vista o interesse pelo alvo central: o momento de concentrar-se no tiro contra
o inimigo. Acertar ou não, para ele se tornava um tema secundário. O importante
era atirar contra um alemão, símbolo do demônio, do mal, do incivilizado, do
guerreiro estúpido e dominador. Quando alguém perguntava se na hora de apertar
o gatilho ele não sentia um arrepio pelo fato de atirar num ser humano, a
resposta sempre vinha com as mesmas palavras: "Na guerra se mata por
patriotismo e não por prazer".
Um dia encontrei-o visivelmente assustado. Tomamos o mesmo
ônibus e notei que ele não conseguia ordenar os assuntos nem ficar
tranqüilamente parado ao meu lado. Virava-se a todo estante e, num dado
momento, pediu para que eu verificasse se o tipo louro havia entrado no ônibus.
Olhei para trás e, com efeito, vi um homem com pinta de estrangeiro. Limitei-me
a balançar a cabeça afirmativamente. Ele se levantou e, segurando com firmeza
sua bolsa de couro, deu sinal de parada. Desci com ele. Não adiantou dizer que
aquele homem era um simples turista, talvez nem alemão fosse. O meu amigo
protestou e, olhando para os lados, confessou o que nunca tivera coragem de
dizer a ninguém:
- Você é o primeiro e talvez o único a saber do que vou lhe
contar: posso estar enganado, mas vi na luz dos olhos daquele alemão, o mesmo
olhar do último inimigo que abati no campo de batalha da Itália. Era um dia
frio e cinzento, de pouca luminosidade. Eu comandava um grupo de oito homens e
invadimos uma região ainda dominada por focos de inimigos alemães. Andávamos
com cuidado por um terreno minado, o que nos ajudou a surpreender os inimigos,
talvez uns cem homens, descansando sobre os escombros do velho castelo
medieval. Em circo, sob a mira de nossas metralhadoras, os cercamos. Eles não
tiveram tempo de reagir. Houve um instante em que eu fiquei sem saber o que
fazer. Notei, então, que começavam a falar entre eles, em alemão. Mesmo sem
saber uma palavra desta língua, pensei: eles combinam nos atacar num assalto
rápido porque são maioria - mais ou menos cem contra oito. Aí, num salto, fiz
gestos para que se dirigissem ao paredão. Como não atenderam de imediato, fiz
um disparo para mostrar que não brincava. Eles correram para a frente do
paredão e, sem maiores delongas, ordenei: "Fogo!" Os corpos foram
caindo. Os olhares deles nos atingiam com uma súplica difícil de ser esquecida.
Quando tombou o último, talvez o mais novo, sai pulando sobre os corpos a fim
de verificar se ainda havia algum vivo. Todos estavam mortos. Era preciso dar o
fora dali rapidamente. Quando olhei para o último homem, tive a impressão de
que ele dirigira os olhos para mim. Meus amigos já se achavam distantes e eu
não podia ficar ali.
O relato cruel e brutal soava aos meus ouvidos como algo
estranho. Preferi não discutir o seu alcance, porém o interrompi para falar
sobre o assombro daquele último homem. Principalmente o seu olhar que deve ter
simbolizado todas as palavras do mundo.
- Tenho certeza que ele escapou daquele último combate e
agora veio ao Brasil ajustar contas comigo. Não importa: eu ou ele irá morrer.
Tranqüilizei-o dizendo que jamais iria acontecer um caso
desse, que o Brasil para os europeus era uma terra distante, perdida na América
do Sul, que eles não odiavam os brasileiros, que o Brasil entrou na se-gunda
guerra forçado pelos norte-americanos, que as feridas da guerra estavam
saradas, cicatrizadas...
Nos despedimos. Ele seguiu para o seu passeio de sempre e
eu fui cumprir a minha obrigação burocrática.
Quando voltava para casa, ao chegar à praça, vi a enorme
aglomeração de pessoas em torno do banco onde jazia o cadáver do meu amigo. Os
comentários eram desencontrados, mas um homem terminava de dizer que recordava
ter visto o morto sentado no banco conversando com um "gringo".
Perguntei pelos traços físicos do estrangeiro, porém o informante não soube
precisar.
Horas depois, no Instituto de Medicina Legal, esperei com
ansiedade a divulgação da causa da morte. E quando li que fora provocada por
uma bala cabeça, fui ao médico e contei que o criminoso deveria ser um alemão.
O médico sorriu e disse:
- Sua história é muito fantasiosa. O tenente simplesmente
se matou com um balaço na cabeça. Conforme informações dos familiares ele saíra
de casa levando dentro da bolsa de couro uma pequena pistola alemã munida de
silencioso. Uma jóia de arma!, disseram. Quem primeiro aproximou-se dele, logo
após o tiro, deve ter carregado a arma e a pasta.
Nada respondi ao médico. Retirei-me afogado numa terrível
dúvida: onde terminava a realidade e começava a ficção? Como devemos qualificar
os pensamentos, absurdos ou não, que nos invadem a cada instante? E foi um
desses que me convenceu de que o tiro que matara o meu amigo, no pior das
hipóteses, fora disparado pelo fantasma do homem abatido há décadas no velho
castelo medieval italiano num distante dia frio e cinzento.
Diário de Pernambuco, 30/08/98
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