MÁRIO SETTE
RECIFE-PE = 1886-1950
Mascates
Todos nós, meninos de um ontem meio remoto,
nos recordamos da festa que era, em casa, a chamada de um mascate.
De longe ouvíamos-lhe o taque-taque
característico do mercador, o que era comum no silêncio das ruas. Nem todo dia
alguém da família o chamava; se isso acontecia o alvoroço era grande. o mascate
a nos entrar pela porta, ao abrir a sua grande "caixa de coisas", um
quê de mistério e de fascinação irrompia. Estojos de papelão, frascos, boiões,
bordados e linhas, fazendas e sobretudo brinquedos...
Que mundo!
Costume, antigamente, no Recife, darmos aos
mascates a alcunha de "italiano" porque a essa nacionalidade
pertencessem quase todos esses vendedores ambulantes.
Seu prestígio de então seria muito maior do
que o de hoje, porque sendo as senhoras mais ou menos sedentárias, indo pouco
ao comércio e não saindo as moças sozinhas, essas pequenas necessidades de
miudezas, tecidos, perfumes, supriam-nas os mercadores ambulantes cuja
importância, entre nós, motivaram até um conflito nativista — a Guerra dos
Mascates.
Ainda no começo do século XX, quando as duas
grandes conflagrações político-econômico-sociais não haviam alterado quase de fond
en comble nossos costumes e nossa pecúnia, o "italiano" era um
semi-deus nos lares. Seu titaquear alvoroçava e não raro solucionava um caso
doméstico: estava-se mesmo precisando, para arrematar costura urgente, de uma
agulha, de um sutache, quando não fosse outro gênero de premência de uma opiata
para os dentes. De tudo o mascate trazia às portas, em ampla caixa de várias
prateleiras. O "italiano" com seus fartos bigodes e sua língua
atravessada vinha à frente batendo a matraca, seguido pelo negro a carregar as
mercadorias. Penetravam pelos arrabaldes depois de percorrerem as ruas
residenciais dos bairros urbanos... Ninguém os dispensava. Só mesmo para os
artigos de luxo, os calçados, as compras de vulto, ia-se às lojas.
Botar o espartilho, vestir aquelas tríplicas
saias, com camisas e corpinhos, pentear os longos cabelos fincando pentes e
marrafas, botar o chapéu de plumas, tudo era para comprar bobagens na rua Nova
ou Imperatriz!
O mascate era um achado de serventia!
Ele não desapareceu hoje em dia. Ainda o vemos nas
ruas, e alguns já montados em bicicletas-mostruários, às vésperas do avião. Mas
nesta época em que a maioria das mulheres — velhas, moças e mocinhas — vêm à
cidade a qualquer pretexto ou sem nenhum pretexto, o mascate perdeu quase todo
o seu préstimo.
É velharia a resistir num Recife em que os
subúrbios se comercializam, abrindo-se ali estabelecimento comerciais até de
luxo, senão modestos, e de quebra! povoando-se as calçadas de tabuleiros e
barraquinhas.
(Sette,
Mário. Maxambombas e maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro, Casa do Estudante
Brasileiro, 1958, p.112-114)
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