CARLOS QUEIRÓS
POETA
PORTUGUÊS = 1907-1949
Carta à memória de Fernando
Pessoa», em Presença, nº 48, Julho de 1936 (extractos):
Meu
querido Fernando: Imagina você a falta que nos faz? Ainda há poucos dias, numa
rua onde parámos a falar de si, o Almada me disse: O Fernando faz muita, muita
falta! Na mágoa deste desabafo, pareceu-me reconhecer a mesma inconfessada
sensação que a sua ausência, algumas vezes, me dá: a de ter feito uma partida
que os seus amigos não mereciam. Quase apetece acusá-lo, gritar à sua memória:
Você não tinha o direito de nos deixar tão cedo!
Mas
o seu mestre Caeiro é quem tinha razão:
Passa a árvore e
fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o
seu pó dura sempre.
Corre o rio e
entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico,
como o Universo.
Na
verdade, a fixação da nossa presença física, seja em que forma for, é o que tem
menos importância; e vem daí, por certo, o enorme esforço que tenho de fazer
para recordar a sua. Não sei que névoa me afasta da próxima realidade dela. É
uma imagem embaciada, talvez pela comovida lembrança da sua delicadíssima
discrição. O Fernando passou por aqui em bicos de pés, coerente com o conselho
dado às companheiras por uma das veladoras do seu "Marinheiro":
« – Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes.»
Em
nada do que você usava se reflectia a fútil premeditação de exibicionismo. No
entanto, toda a sua vulgaríssima indumentária, desde o chapéu aos sapatos, era,
não sei porquê, espantosamente diversa da de toda a gente. Sei lá que tinha?
Uma expressão inconfundível, um jeito especialíssimo, dado por si, sem querer.
Os
seus gestos nervosos, mas plásticos e cheios de correcção, acompanhavam sempre
o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com todas as palavras. De quando em
quando, pequenos risos (risinhos, é que diz bem), de criança triste a quem
fazem cócegas, vinham festejar, alegremente, as descobertas do espírito – suas
ou alheias, porque o Fernando não sabia reprimir o prazer que lhe causava a
graça ou a simples alegria dos seus amigos.
A
sua ironia, também de qualidade sui generis, era aguda, intencional,
oportuna, mas sempre delicada e transparente, sem crueldades felinas. Nunca
ouvi ninguém queixar-se de ter sido atingido por ela, nem assisti a que
fizesse, na susceptibilidade de quem quer que fosse, a mais leve arranhadura.
Era como aqueles gatos de boa raça que metem as unhas para dentro, quando
brincam...
No
acaso dos diálogos – aos quais nunca impunha, ditatorialmente, a direcção do
seu espírito –, esperava que coubesse aos outros a sua vez de falarem para os
escutar com atenção. Porém, no seu olhar, lia-se qualquer coisa parecido com o
receio de que o supusessem perscrutador.
O
seu discreto temperamento ajudava-nos pouco o desejo de lhe fazermos qualquer
pergunta mais familiar, mais íntima. Como inquirir-lhe da saúde, sem ter medo
de magoá-lo em qualquer parte da alma? Era difícil, sabe? Quanto mais
perguntar-lhe: Que faz esta noite? Aparece amanhã? Chegava a ter a impressão de
devassar-lhe a intimidade, quando o encontrava, às vezes, na rua...
Quando
ia só, ou como se o fosse, apesar de não ser o que se chama, em linguagem
doméstica, um abstracto ou distraído (pois a sua atenção, por mais repartida
que estivesse, era sempre suficiente para apreender o que se passava à sua
volta), costumava aflorar aos seus lábios estreitos o sorriso de quem lê uma
carta confidencial, amiga e interessante.
Nada
em si afastava quem o procurasse; antes pelo contrário – a não ser, a alguns
dos mais orgulhosos ou tímidos dos seus amigos, a certeza de que você era
incapaz, sem fortes razões justificadas, de procurar fosse quem fosse.
O
seu sentimento de intimidade não era fruto de egoísmo nem de vulgar
misantropia: era-o, sim, do profundo respeito que o Fernando tinha por si
próprio e pelo que nos outros estimava que também fosse respeitável. Daí, a
impossibilidade de abrir à curiosidade dos seus mais assíduos companheiros uma
fresta por onde pudessem espreitar a sua vida sentimental:
«Não
há quem saiba se eu gosto de ti ou não porque eu não fiz de ninguém
confidente sobre o assunto.» Esta frase, cujas palavras sublinhadas o foram por
si, é de uma das primeiras cartas que o Fernando dirigiu àquela a quem escreveu
nove anos mais tarde: «... Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se
o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se
coadunem com a minha vida de pensamento.»
As
suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a
gente. Amou e – o que é extraordinário – como se não fosse poeta. Na evidente
espontaneidade dessas cartas, que o Destino quis pôr nas minhas mãos, não se
encontra um vestígio de premeditação formal, de voluntária intelectualidade.
Que
admirável exemplo de humana integração no organismo da Vida! Lê-se qualquer
delas – escolhida, ao acaso, entre as dezenas que a totalidade constitui – e
logo nos ocorre esta pergunta, forrada de espanto: Como teria sido possível ao
mais poeta dos homens e ao mais intelectual dos poetas portugueses (e, aqui, a
palavra portugueses tem uma importância muito especial) libertar a tal
ponto o coração da literatura?! (...)
Boa
noite, Fernando. Não preciso dizer-lhe que sinto, nem por que sinto saudades
suas. Mas não lhe peço que volte. Que temos aqui, que possa interessá-lo ou, o
que é mais triste, merecê-lo? Não temos nada, bem sabe, de que você não conheça
já melhor do que nós, o vazio sem fundo, a mentira sem remédio, a trágica
inutilidade...
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