IVAN ÂNGELO
BARBACENA-MG = 1936
Herói Da Língua
Vocês se lembram
do meu amigo Toninho Vernáculo. Já falei dele uma vez, contei histórias da
mania que tem de corrigir erros de português. Daí o apelido. Cansei de falar:
deixa, Toninho, esta língua é complicada mesmo, até autor consagrado escreve
com dicionários e gramáticas à mão.
– Pelo menos eles
têm a humildade de consultar os mestres antes de dar a público o que escrevem –
respondia o Toninho na sua linguagem em roupa de domingo.
Lembram-se dele? Quando
encontra erros de português no seu caminho, telefona para os responsáveis,
exige correções em nome da língua pátria e da educação pública. Coisas assim:
– A placa do seu
estabelecimento é um atentado contra a língua, induz as pessoas a achar que o errado
é o certo, espalha a confusão.
Ultimamente
andava se controlando, me telefonava muito menos do que antes, relatando
atentados mais graves contra a boa linguagem, praticados por quitandeiros,
padeiros, donos de restaurantes, prestadores de serviços em geral – e pasmem:
até pela prefeitura (em nomes de ruas), por publicitários, jornais.
Dom Quixote da
gramática, Toninho não se dava descanso. Lia coisas assim nos anúncios
classificados dos jornais e ficava indignado: baile "beneficiente";
faça "seu" óculos na ótica tal; "aluga-se" dois galpões.
Ex-jornalista, aposentado, telefonava para os encarregados dos pequenos
anúncios:
– No meu tempo
não era assim! Os responsáveis eram responsáveis, cuidavam da correção dos
anúncios. O povo não sabe escrever, mas os jornais têm o dever – o dever! – de
zelar pela língua!
No convívio
diário, arrumava desafetos, humilhados e ofendidos, mas também alguns – os mais
humildes – agradecidos pelo ensinamento. Quixoteava lições, fosse qual fosse o
interlocutor:
– Não é
"fluído" que se diz, é fluido, com a tônica no u. "Fluído"
é verbo, é particípio verbal, não pode ser uma coisa. "Gratuíto" não
existe, é gratuito que se diz, som mais forte no u. Homem não diz
"obrigada", isso é coisa de menino criado entre mulheres; menino fala
"obrigado". "Emprestar dele" é promiscuidade brasileira
aqui do Sul; o certo da língua é emprestar a alguém, ou tomar emprestado. Não é
"o" alface, é a alface, feminino. Não existe isso,
"inhoque", que coisa mais feia; o certo é nhoque, do italiano gnocchi.
Grama, medida de peso, é masculino: "um" grama, "duzentos"
gramas. Quilo se escreve com q, u, i, não existe quilo com k e muito menos com
k, y: é comida a quilo e não "a kylo", como se lê na sua placa. Está
na hora "do" parabéns é errado; parabéns é plural, como em meus
parabéns.
– Peraí, Toninho,
agora você exagerou. Hora do parabéns significa: hora de cantar o
"Parabéns pra Você". Resumido.
Aceitou, mas
resmungando. Bom, um dia desses, telefonaram-me de madrugada: Toninho havia
sido preso como pichador de rua. Quê, um homem de 70 anos? Havia algum engano,
com certeza. Fomos para a delegacia, uma trinca de amigos.
Engano havia e
não havia. Nosso amigo fora realmente flagrado pela polícia com spray e latinha
de tinta com pincel, atuando na fachada de uma casa comercial do bairro onde
mora. Explicou-se: estava corrigindo os erros de português dos pichadores!
Começamos os esforços para livrá-lo da multa e da denúncia, explicamos ao
delegado que o ocorrido era fruto de uma mania dele, loucura leve. Por que penalizá-lo
por coisa tão pouca? Não ia acontecer de novo.
Aí o delegado
explicou qual era a bronca: o Toninho havia pedido para ler seu depoimento,
datilografado pelo escrivão, e começou a apontar erros de português no texto do
funcionário. A autoridade tinha a pretensão de ser também autoridade em
gramática. Aí melou: "teje" preso por desacato.
Com dificuldade
convencemos o escrivão da loucura mansa do nosso amigo, e ele liberou o herói
da língua pátria.
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