ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA
= 1855-1908
Encontros
Reveladores
Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do
Segundo Império. A historieta não será talvez muito divertida, mas é humana. Lá
vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro da Justiça, que o nomeara juiz de
Direito de Niterói, lembrou-se o Dr. Sales de convidá-lo para padrinho de seu
último pimpolho.
O ministro aceitou o convite, mas como a época era de grande agitação
política e não lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuração ao seu
oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representá-lo na cerimônia, e levar o
pequeno à pia.
À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr. Sales, onde
o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o próprio conselheiro.
O bom homem já estava, aliás, habituado a esses togatés. Depois que o
ministro, seu companheiro de infância e amigo íntimo, fizera dele o seu oficial
de gabinete, o seu auxiliar de imediata confiança, quase o seu alter
ego, o Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha inúmeros amigos de
cuja existência nem sequer suspeitava. Antes que ele exercesse aquela posição
oficial, pouca gente o cumprimentava; depois que a exercia, todos lhe tiravam o
chapéu!
Terminada a cerimônia do batizado, o Dr. Pinheiro quis retirar-se:
estava cumprida a sua missão, mas o Dr. Sales e toda a família instaram com ele
para almoçar.
O almoço fez-lhe mal. Na ocasião em que o padrinho por procuração ergueu
a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo juiz de Direito ao
seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro e secretário de
Estado dos negócios da Justiça, o Sr. Pinheiro sentiu turbar-se-lhe a vista e a
casa andar à roda. Caiu sentado sobre a cadeira, quebrando a taça que tinha na
mão, e perdeu os sentidos.
Foi um alvoroço. Saíram todos dos seus lugares e cercaram o Sr.
Pinheiro, que não dava acordo de si.
Entre os comensais havia, felizmente, um médico. Transportado para um
quarto e estendido sobre um leito, o Dr. Pinheiro foi imediatamente socorrido e
medicado.
- Não há de ser nada, explicou o médico, mas é preciso que o doente
fique no mais absoluto repouso; que ninguém lhe fale nem ele fale a ninguém!
- Mas, que foi?
- Um ameaço de congestão.
No mesmo dia o Dr. Sales mandou à casa do Dr. Pinheiro, que era viúvo e
não tinha família de espécie alguma e morava com ele apenas um criado, que foi
ter logo com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca.
No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre, para
participar-lhe que o seu oficial de gabinete adoecera em Niterói, mas S. Exa.
não lhe pôde dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelação na
Câmara, e não podia pensar noutra coisa.
O Dr. Pinheiro logo no outro dia pretendeu recolher-se aos penates, mas
o médico proibiu-lhe terminantemente, dizendo: - uma imprudência pela qual não
me responsabilizo!
Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niterói, metido entre quatro
paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia sentiu-se completamente
restabelecido, e teve alta. Durante esse tempo alguma coisa se passara, de
certa importância, mas em casa do Dr. Sales nada disseram ao Dr. Pinheiro,
receando que qualquer comoção moral lhe produzisse novo ataque.
Seguido pelo seu fiel criado, que o não abandonou um instante, o Dr.
Pinheiro tomou a barca, e chegando ao Pharoux, entrou num carro que estava à
sua espera, indo o criado para a boléia.
Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura
obrigada do gabinete do ministro, sujeito que costumava saudá-lo com muitos
rapapés, agora, ao vê-lo, apenas levou a mão à aba do chapéu.
Mais adiante, na Rua da Assembléia, outro importuno olhou para ele e
desviou os olhos, fingindo que não o via.
No Largo da Carioca, um oficial da secretaria, que se empenhara, não
havia muito, com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o
oficial de gabinete um olhar de proteção. .
- Não há que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministério!
De fato, havia três dias que o ministério caíra, depois da tal
interpelação. Ninguém o dissera ao Dr. Pinheiro, nem verbalmente nem por
escrito: ele adivinhou-o, graças àqueles três encontros reveladores.
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