sábado, 15 de setembro de 2012

CONTO = Afonso Celso

AFONSO CELSO
OURO PRETO-MG = 1860 / 1938


Um Invejado



Que bonito, elegante e pequeno carro, tirado por minúsculos cavalos de raça, estacionava à porta do palacete Apolinário, naquela magnífica tarde de verão!...

Era um veículo de criança, mas de criança milionária, afeita aos requintes do luxo - um brinquedo caríssimo, ao mesmo tempo suntuoso e catita, que fazia cismar em principescas fantasias.

Toda a vizinhança acorrera às janelas e portas para o admirar.

Em torno à diminuta e primorosa caleça, grupos de curiosos se haviam formado. Garotos e moleques tinham-se aproximado respeitosamente dos animais, examinando as menores particularidades dos arreios, com pasmadas interjeições.

Pulavam comentários. E o cocheiro inglês, cuidadosamente escanhoado, o chicote da destra enluvada, as rédeas firmes na esquerda, permanecia impassível, sob a libré de aparato, em atitude hierática, circunvagando lentamente olhares de desdém.

- É um presente de anos feito pelo Comendador Apolinário ao filho, murmurou um dos espectadores.

- Que felizardo o tal Juquinha! acrescentou o segundo. - O pai realiza todos os seus caprichos. Não há menino criado com maior opulência. Que de contos de réis não custaria esta tetéia!...

- Que quer?! - sobreveio terceiro. - Pois se o Comendador não sabe em que gastar os rendimentos.... É um dos fazendeiros mais ricos do Brasil. O Juquinha mesmo já deve possuir não pequena fortuna própria, herdada da mãe.

- Para estes é que serve a vida - tornou amargamente o primeiro. - Uns tudo, outros nada.

A Providência ignora a conta de repartir. Quantas famílias não se alimentariam durante anos só com o preço das superfluidades despendidas nesta casa...

E designava o prédio nobre, com vasto jardim ao lado, sito numa das ruas que vão perpendicularmente do Catete à praia do Flamengo.

Este prédio, de vistosa arquitetura, aprumava-se sobranceiro em meio das modestas vivendas do local.

As suas largas janelas, ornadas de lindas cortinas, dominavam os mais altos sobrados adjacentes. Circunspecto porteiro agaloado guardava sempre o amplo vestíbulo. E saíam do interior emanações de cousas preciosas, reflexos de fausto e conforto.

Da extremidade da rua, próxima à residência do Comendador, avistava-se uma nesga da baía.

A fortaleza de Santa Cruz dealbava o fundo, apensa à linha de montanhas, que fechava o horizonte. O Pão de Açúcar derreava-se hirto à entrada da barra. Monótono e constante, ouvia-se o rumor das vagas, espojando-se na areia.

Perpassou um frêmito entre os assistentes. Abrira-se a grade do palacete e no limiar assomara esbelto menino.

Não contaria mais de quatorze anos. Mas que ar de suficiência e superioridade!

Dir-se-ia conspícuo personagem, triunfador da vida.

Veste finos trajos, no rigor da moda. Formoso o rosto, cintilante o olhar, desempenado e desenvolvido o corpo.

Detém-se alguns minutos, trocando leves cumprimentos com conhecidos, que embevecidamente o miram.

Salta depois lepidamente no carro, dando ordem rápida ao cocheiro.

- É o Juquinha ... é o Juquinha... como está crescido e arrogante o pimpolho! - sussurra-se em roda.

Os cavalos partem num belo trote, deixando um rastro de embasbacamento.

Afluíra gente a todos os peitoris para ver passar o jovem ricaço, que, uma perna superposta à outra, reclinado em almofadas de seda, onde brilha, bordado a ouro, o seu monograma, lá se vai avante, digno, compenetrado do seu valor.

Breve, a carruagem dobrou a esquina do Catete e desapareceu na direção de Botafogo. Ao cruzar com ela, voltam a cabeça os transeuntes.

Em frente à residência do Juquinha, numa velha casa térrea, duas crianças - uma menina e um rapaz - haviam assistido com especial interesse à cena esboçada.

São os filhos de D. Canuta - viúva de um militar, pobre senhora, que vivia a coser para sustentar a família.

Primogênito o rapaz; chama-se Antenor. Pouco mais novo do que o Juquinha, apresenta em mirrado e macambúzio o que aquele ostenta em viço e expansão.

A irmã tem por nome Enedina. Que cútis, que cabelos, que olhos, que natural distinção física nesta pequena!

É uma aurora de radiante formosura, o embrião de esplêndida mulher.

Seduz principalmente em Enedina angélica expressão de docilidade. Dificilmente saberão seus lábios articular frases de recusa. Pertence à classe desses entes resignados, meigos e passivos, um tanto obtusos, que as vontades fortes dominam completamente e levam, sem relutância, para onde lhes apraz.

E a prole de D. Canuta persiste imóvel. O espetáculo da saída do Juquinha mergulhara-a em êxtase.

Aquela visão de suntuosidade impressionara os dois irmãos tanto mais quanto em apertada economia eles vegetavam. Como em todas as grandes capitais, a magnificência ombreava ali com a carestia e a miséria.

Mas o olhar de Enedina, contemplando o Juquinha, traduzia apenas ingênuo assombro, cândido enlevo diante de deliciosos prodígio - enlevo repassado de simpatia e um quê de ternura.

Não assim o de Antenor. Há no deste a explosão prematura de sentimentos sombrios. Cortam-no relâmpagos de despeitado rancor.

Quando o carro do Juquinha se sumiu - ei-lo que fecha a janela com mão trêmula.

Tomba pensativo sobre uma cadeira, soltando dorido suspiro.

Tumultua-lhe no íntimo um misto obscuro de raiva e revolta, cobarde desejo de despojar o Juquinha, substituindo-se a ele, gozando do mundo em lugar dele.

Desbordava a inveja, a terrível inveja, mais cruciante que o ódio ou o ciúme, do seu coração infantil.

E, desde esse instante, nunca mais se alterou tão repulsivo sentimento.

Antenor invejou sempre, sempre, o Juquinha, através das longas e trágicas peripécias em que o destino de ambos e o de Enedina se confundiram.

Porque o fado irônico entrelaçou intimamente a existência do brilhante descendente do comendador Apolinário à da humilde progênie da viúva.

Quem o suspeitaria naquela ocasião?!

No momento em que o Juquinha rolava ufano pela calçada do aristocrático arrabalde, num passeio de mera ostentação, ou para estimular o apetite embotado por adubadas iguarias, D. Canuta, que não tinha criados, à exceção de um pequeno moleque, incumbido dos serviços mais grosseiros da casa, depunha fatigada a costura, exclamando:

- Que estás aí a parafusar, Antenor? ...Vamos... São horas. Varre a sala de jantar, enquanto Enedina põe a mesa e eu vou ver se já ficou pronto o feijão...



(Um invejado, 1894)





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