Festa De Criança
Você reconhece quem teve uma festa de criança em casa no
dia anterior. Alguma coisa no rosto. A expressão de quem chegou à terrível
conclusão de que Herodes talvez tivesse razão.
— Que respiração ofegante o senhor tem!
— Foi de tanto encher balão.
— Que dificuldade o senhor tem para caminhar!
— Foi de tanto levar canelada tentando apartar briga.
— Como as suas mãos estão trêmulas!
— Foi de tanto me controlar para não esgoelar ninguém! Respeito
e consideração para quem teve uma festa de criança em casa no dia anterior.
O pai e a mãe estão atirados num sofá, um para cada lado.
Semiconscientes. Já é noite, mas a festa ainda não acabou. Sobram três crianças
que não param de correr pela casa.
— Tenho uma idéia — diz o pai.
— Qual é?
— Vamos mandar eles brincarem no meio da rua. Esta hora tem
bastante movimento.
— Não seja malvado. Daqui a pouco eles vão embora.
— Quando? Essas três foram as primeiras a chegar. Acho que
os pais deixaram elas aqui e fugiram para o exterior.
Uma menina cruza a sala na corrida. Quando chegou, tinha o
vestido mais engomado da festa. Depois de três banhos de guaraná e uma batalha
de brigadeiros, parece uma veterana das trincheiras.
— Essa aí é a pior — diz o pai, num sussurro dramático. —
Essa baixinha! E um terror!
— Coitadinha. É a Angélica.
— Angélica?! É uma terrorista!
— Sshhh.
— De onde é que saiu essa figura?
— É uma colega do Paulinho.
— E aquele ranhento que não pára de comer?
— É o Chico. Também é colega.
— Será que não alimentam ele em casa? E o outro, o que está
pulando de cima da mesa?
— É o Paulinho! Você não reconhece o seu próprio filho?
— Ele está coberto de chocolate.
— É que ele teve uma luta de brigadeiros com a Angélica…
— E perdeu, claro. A Angélica é imbatível. Guerra de
brigadeiros, jiu-jítsu, vôlei com balão, hipismo com cachorro. Ela foi a única
que conseguiu montar no Atlas.
— Por falar nisso, onde é que anda o Atlas?
— Fugiu de casa, lógico. Era o que eu devia ter feito.
— Ora, é só uma vez por ano…
— Você precisava me lembrar? Pensar que daqui a um ano tem
outra…
— Você não pode falar. Você também gosta de fazer festa no
seu aniversário.
— Mas nós somos finos. Nenhuma festa teve guerra de
chocolate. Nos embebedamos como pessoas civilizadas.
— Ah, é? E o anão com o trombone?
— Essa história você inventou. Não havia nenhum anão com um
trombone.
— Ah, não? A Araci é que sabe dessa história. Só que ela
foi embora no mesmo dia.
O Chico se aproxima.
— Tem mais cachorro-quente?
— Não, meu filho. Acabou.
— Brigadeiro?
— Também acabou, Chico.
— Dá uma lambida na cabeça do Paulinho — sugere o pai, sob
um olhar de reprimenda da mãe.
— Puxa, não tem mais nada? — diz o Chico. E se afasta,
desconsolado.
— E ainda reclama, o filho-da-mãe!
— Shhh.
— Bom, você eu não sei, mas eu…
— Você o quê?
— Vou tomar meu banho, se é que ainda tenho forças para
ligar um chuveiro, e ver televisão na cama.
— E quando chegarem os pais?
— Que pais?
— Os pais da Angélica e dos outros, ora.
— O que é que eu tenho com eles?
— Quando eles chegarem, você tem que receber.
— Ah, não.
— Ah, sim!
— Mais essa?
Batem na porta. O pai vai abrir, esbravejando sem palavras.
É um casal que se identifica como os pais da Angélica.
— Entrem, entrem.
— Nós só viemos buscar a…
— Não, entrem. A Angélica não vai querer sair agora. Ela é
um encanto. Meu bem, os pais da Angélica. Sentem, sentem.
O pai esfrega as mãos, subitamente reanimado.
— Quem sabe uma cervejinha? Querida, vá buscar.
Como a Araci se foi, a própria mãe — que se ocupou com a
festa desde de manhã cedo, que mal se agüenta em pé, que podia matar o marido —
vai buscar a cerveja. Pisando nos embrulhos de doces, nos copos de papelão e
nos balões estourados que cobrem o chão e que ela mesma terá de limpar no dia
seguinte. Respeito e comiseração para as mães que tiveram festa de criança em
casa, no dia seguinte.
Enquanto isto o pai acaba de abrir a porta para os pais do
Chico e os manda entrar, entusiasmado com a idéia de começar sua própria festa.
— Querida, mais cerveja!
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
PORTO ALEGRE-RS = 1936
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