ARTUR DE AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908
História De Um
Dominó
Perdoem-me os leitores se eu, de
ordinário alegre, venho contar-lhes uma história triste, num dia em que todos
estão predispostos ao riso; mas. . . que querem? Tenho uma natureza especial: o
carnaval entristece-me, e o "Abre alas, que quero passar" soa aos
meus ouvidos como um canto de agonia e de morte.
* * *
Dado esse pequeno cavaco, saibam os
leitores que conheço um homem, o Abreu, que é o mais triste dos homens: só se
compraz na solidão e no silêncio, não tem amigos, vive só, e nunca ninguém o
viu rir, nem mesmo sorrir.
Entretanto, esse casmurro, em chegando o
carnaval, veste um dominó e sai à rua mascarado. Isto são favas contadas todos
os anos.
O ano passado um vizinho teve a curiosidade
e a pachorra de mascarar-se também para acompanhá-lo a certa distância, e
observar o que ele fazia.
Era domingo gordo; toda a população
estava na rua. O Abreu apeou-se do bonde, o mesmo bonde em que vinha o curioso
que o acompanhava, um bonde do Catumbi, o bairro onde moravam ambos, e desceu
com muita dificuldade a Rua do Ouvidor. Chegando em frente à casa de um
alfaiate, em cuja porta estavam sentadas algumas donas e donzelas à espera das
sociedades, parou, encostando-se na parede da casa fronteira, e ali se deixou
ficar, pegando no grupo das senhoras os olhos, que faiscavam através dos dois
buracos da máscara de seda.
O Abreu demorou-se ali seguramente meia
hora, e o vizinho, farto de esperar, resolveu abandoná-lo, dizendo consigo: -
Ora! é um esquisito!... Deixemo-lo!...
Deixou-o efetivamente, mas uma hora
depois voltou, e ainda lá encontrou o Abreu no mesmo ponto e na mesma posição
em que o havia deixado. Examinou então com mais cuidado o grupo das senhoras, e
reconheceu, surpreso, que uma delas era a mulher do Abreu.
* * *
Sim, que o Abreu tinha sido casado com
uma bonita mulher que um dia o abandonou para amancebar-se com um sujeito que
ele supunha seu amigo, e ao qual abrira confiadamente as portas de sua casa. O
amante lá estava por trás do grupo também à espera das sociedades. Toda a gente
os supõe casados.
Desde que lhe sucedeu essa desgraça, o
Abreu tornou-se triste, e sua tristeza durou e dura ainda, porque ele amava
profundamente aquela ingrata. Amava-a tanto, que neste mundo só uma coisa lhe proporcionava
um simulacro de prazer: vê-la de perto.
Entretanto os leitores compreendem que o
Abreu não poderia procurar a miúdo tão singular espécie de consolação, e nos
raros encontros fortuitos que tinha com ela, não a encarava de modo a
satisfazer aquele apetite mórbido.
Mas uma vez, há cinco anos, disseram-lhe
que sua mulher tinha assistido ao carnaval sentada à porta do alfaiate e, no
ano seguinte, o Abreu, metido num dominó alugado, foi verificar se ela
escolhera o mesmo ponto. Encontrou-a, e durante muitas horas conseguiu vê-la de
perto e à vontade.
Daí por diante o infeliz marido não
perdeu um carnaval, e é muito provável que amanhã lá esteja a postos em frente
à casa do alfaiate. Os leitores, com alguma pachorra, poderão certificar-se de
que este conto não é inventado.
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